quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Vamos falar de prisões?

Crédito: Gleice Lisboa. Humilhação.
Frente a situação calamitosa do Maranhão, a discussão sobre o sistema carcerário brasileiro se mostra mais uma vez necessária - não que em algum ponto tenha deixado de o ser. Soluções fáceis tem sido lançadas a esmo; em sua maioria, resumem se a aumentar a violência contra o preso, efetuar mais prisões, retirar direitos (referindo aos mesmos como privilégios) e estender penas - ou seja: ser "duro com o crime", um lugar comum que não aborda os pontos vulneráveis do sistema, e se baseia em uma série de premissas falhas.

População Carcerária. 

A discussão a respeito da criminalidade frenquentemente envolve a alegação de que não se fazem prisões o bastante no país - que "se tem leis demais para proteger bandido", que deve se reduzir a maioridade penal, e ocasionalmente, que o direito a um julgamento justo é "fazer carinho em bandido". Mas será que as estatísticas apontam para uma carência de prisões efetuadas? Vamos para os dados, como emitidos pelo InfoPen e o Conselho Nacional de Justiça. 

O dado mais recente do InfoPen, referente a dezembro de 2012, indica uma população carcerária de 548 mil presos - o Depen (Departamento Penitenciário Nacional) aponta 563,7 mil; destes, 195 mil estão em situação provisória - leia: ainda não foram condenados, e portanto não poderiam estar presos. Outros 22 mil, segundo o CNJ, já cumpriram suas penas e deveriam estar em liberdade. O mutirão carcerário 2011 do CNJ indica mais problemas demográficos, entre lotações e penas excessivas, sofrimento desnecessário causado pela superpopulação e condições precárias, trabalhos forçados sem determinação penal.

Segundo dados oficiais, apurados por Thiago Reis e Clara Velasco para o portal G1, tem-se um deficit carcerário de 200,2 mil vagas; o sistema tem capacidade para apenas 363,5 mil presos. Além disso, enquanto se tem a queixa comum de que não se prende o bastante, o Brasil teve uma explosão carcerária nos últimos 20 anos, passando de 126 mil para quase 564 mil presos entre 1993 e 2013.

Sob a égide do "direito humano" de levar porrada..
Onde isso nos coloca globalmente? O Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo, ficando atrás apenas da China (1,6 milhão de presos), da Rússia (780 mil presos) e dos EUA (2 milhões de presos)- e isso não é um bom indicador. Leve se em consideração que dois dos casos são países extremamente autoritários, um deles com a maior população do globo, e o terceiro mantém em muitos estados um regime de prisão perpétua para criminosos reincidentes, juntamente com uma privatização carcerária que deu força a um lobby para ampliar penas de privação da liberdade e reduzir a aplicação de penas alternativas. 

Detenção, violência e socialização


Presos são torturados em Santa Catarina
Como dito acima, e apontado pelo mutirão carcerário do CNJ, o tratamento dado aos presos no Brasil envolve uma série de violências sistêmicas, que tornam a ressocialização do detento muitas vezes impossível. O descaso do estado para o preso abriu as portas para que as prisões virassem domínio de organizações criminosas; com frequência, os "novatos" são obrigados a se juntar a uma das facções criminosas formadas dentro da unidade de detenção para obter um mínimo de segurança, não oferecida pelo estado.

O tratamento é frequentemente desigual; No Grajau, "presos colaboradores" assumiram as funções administrativas da carceragem, enquanto na Pavuna (ambos no Rio de Janeiro), a "segurança interna", para economizar em agentes carcerários, ficou sob "responsabilidade" dos detentos. Em ambos os casos, assim como em vários outros de acordos "extra oficiais" dos agentes com os presos, os "colaboradores" recebiam regalias que incluíam quartos com ar-condicionado, refrigeradores e televisões, enquanto o restante dos detentos se amontoava em celas super lotadas e imundas.

Criança dividindo espaço com detenta. Autor desconhecido.
Condições de higiene insalubres são norma, não exceção, assim com a carência de material de saúde - em alguns casos, o mutirão encontrou coisas como detentas sendo obrigadas a usar pedaços de pão como absorvente íntimo, enfermarias com remédios vencidos a mais de cinco meses, presos dividindo espaço com ratos e baratas. Celas para quatro presos frequentemente abrigam 15, detidos como animais em celas sem ventilação, submetidos a calor excessivo, dormindo amontados no chão - não raro imundo. Em presídios femininos, ainda é comum que essas celas atrozes, inadequadas até para a sobrevivência de adultos, sirvam de abrigo para crianças.

Para não mencionar quando a violência não se resume ao sistêmico - os casos frequentes de violência contra os detentos, que incluem espancamentos, torturas e até execuções por parte de agentes carcerários e facções criminosas para "dar um exemplo" ao restante dos presos; abusos sexuais e estupros contra detentas, frequentemente grupais; assédio e tentativas de intimidação contra parceiras do detento em visitas íntimas; privação de tratamento médico, presas algemadas no pós parto e regimes de isolamento prolongados sem justa causa (problemas que não se restringem ao Brasil, admita-se).

Costas marcadas pela tortura, realizada por outros presos.
Agência Mais
Tudo isto com o aval da população, que clama por um tratamento mais grotesco - como se o problema da reincidência (que no caso de menores infratores é de 70%, um dos maiores do mundo - entre os presos adultos, é de "meros" 50%) se devesse ao presos não serem desumanizados o bastante - e não ao quão brutalizado ele foi na prisão, e quão excluído é ao sair dela. E isso advém de como o preso e o "bandido" são representados no imaginário popular.

Representação do Preso

Um argumento comum para justificar a violência contra o detento é bem simples: ele merece por causa das pessoas que ele matou/sequestrou/estuprou/assaltou. E ele é bem emblemático de como vemos a questão criminal. Tem se a ideia fixa de que todo preso é um criminoso violento, perigoso, irredimível, e que portanto merece ser alvo da mais abjeta violência. Mas segundo o CNJ, 65% dos presos brasileiros não cometeram crimes violentos - e como mencionado anteriormente, quase 200 mil ainda nem foram julgados.

Não se olha o fator social do crime - se reduz o problema da criminalidade de um fator social complexo para uma mera questão de "caráter ruim". Não são as políticas sociais, a falta de oportunidades, o vício, a discriminação ou o estado paralelo que se formou em comunidades carentes que leva jovens em situações vulneráveis ao crime: é "sangue ruim"; "falta de caráter"; "o jeitinho". Vê se na violência uma solução pois não se considera que o problema seja social. Quando questiona-se o porque de países com programas sociais e de inclusão decentes terem taxas de crimes tão mais baixas, se responde com "mas a cultura é diferente" (quando não se apela para "não se tem essa gente ruim").

para não citar as prisões injustas, como a de Mario Cirlei Brito,
vitima de um erro de identificação.
Mas vamos aos dados nisso, segundo o CNJ; 95% dos presos são pobres ou muito pobres, em sua grande maioria oriundos de favelas e ocupações - onde o estado se faz ausente exceto pela repressão. 65% não tem o ensino fundamental completo - o que severamente limita a inserção no mercado de trabalho e a possibilidade de sustento.  66% são negros e pardos em um país racista, onde a PM já mais de uma vez recebeu ordens explícitas para abordar "negros e pardos", onde o tom de pele e estrato social são argumentos para ser prejulgado criminoso, e novamente limitam pesadamente a inserção social.

E aí vem a questão do ex-presidiário; como pode o indivíduo que já tem todos esses estigmas e que raramente é capacitado ou educado dentro da prisão - embora seja um direito constitucional e um dos pilares do processo de ressocialização, apenas 8,6% dos presos estão inclusos em programas educacionais, e somente um quinto dos presos está trabalhando. Fora da prisão, a marca de "ex-presidiário" é garantia de desemprego (visto que muitos acham correto não contratar ex-presidiários, porque "vai que me mata"), da impossibilidade de se alugar uma casa, e até de contratar certos serviços. Sem oportunidades, não lhes resta muito senão o crime.

Cenas como essa ainda são raras - e a ideia que se tem de "por
preso para trabalhar" ainda é a de trabalhos forçados e sujeita-los
a violência. Quando não envolve sugerir que se usem presos como
cobaias.
Há exatos 150 anos, o escritor francês Victor Hugo abordou o tema em Os Miseráveis - preso por um crime minúsculo - quebrar uma janela e roubar um pedaço de pão para alimentar a sobrinha faminta - Jean Valjean passa 19 árduos anos preso, humilhado e submetido a trabalhos forçados; fora da prisão, marcado como um "criminoso perigoso", é hostilizado e excluído por todos a sua volta. Entrou na prisão um homem bom - ignorante e que nunca fora amado, mas bom - e assustado. E emergiu de lá embrutecido e cheio de ódio. Valjean teve sua recuperação através de outro crime: a falsidade ideológica, pois apenas "matando" Jean Valjean que teria direito a uma vida nova - os Valjeans brasileiros, não tem essa chance.

E agora?

Fonte: Latuff
A tendência, lamentavelmente, é que esses problemas tendam apenas a aumentar; a revolta dos presos e a presença de facções criminosas surgidas como resultado desse sistema podre é vista como um sinal de que mais violência é necessária. O embrutecimento do discurso político vêm tornado "justificável" prisões "preventivas" - como as vistas em rolezinhos e protestos, onde o cidadão é detido "pois poderia cometer um crime", violando o principio constitucional de que somos inocentes até que se prove o contrário - E com a aproximação da Copa do Mundo e a obsessão em manter uma "boa imagem", a tendência é que as prisões irregulares sejam mais comuns. Junto com a higiene social de se prender mendigos, pedintes, meninos de rua e usuários de drogas sem tipificação de crime, para "eliminar o mal pela raiz".

Mas há outro problema por vir: recentemente, a Deputada Federal Antônia Lucia (PSC-AC) apresentou uma PEC que eliminaria um benefício direcionado aos familiares de presos que tenham contribuído com o INSS. Alegando que o auxílio reclusão, criado em 88 para garantir a subsistência de filhos de detentos (e não "criado pela Dilma para dar dinheiro pra vagabundo", como se espalhou pela internet), é "um estimulo a bandidagem", a deputada propõe deixar ao relento a família do preso - explicitamente como uma punição adicional, novamente em violação da constituição, punindo inocentes pelo crime do pai/mãe - para dar auxílio à vítima do crime, que já pode exigir indenizações do réu e do estado. O resultado disso, na melhor das hipóteses é virar os prejudicados - crianças - para a miséria e o crime. No pior, mata-los de fome.

"Tá com pena, leva pra casa".  

Considerações sobre o clichê.

A lógica de desumanização do outro, e a hostilidade do "debate"
em evidência.
Só para responder a alguns "argumentos" comuns em prol dos maus tratos aos detentos - primeiro, o clichê do "tá com pena, leva pra casa": não se trata de ter pena - trata-se do que estamos fazendo como sociedade, nos rebaixando a tortura e a degradação do ser humano em nome de uma "justiça" que não tem nada de justiça, e muito da mais baixa vingança. Argumentem o quanto quiserem que o cidadão X é um assassino - mas isso não justifica sequer torturar "X", quanto menos "Y", que foi preso por roubar uma garrafa de cerveja, "Z", que foi preso por desacatar o policial, e "A", preso por que parecia suspeito e ninguém se ergueu para defende-lo. 

Outro é o "só defende bandido quem é bandido" e o seu parente, "direitos humanos para humanos direitos".; Não sou uma mulher, mas defendo as feministas. Não sou gay, mas sou a favor do movimento LGBT. Não sou uma árvore, mas defendo o ambiente. Não fumo e nem quero fumar maconha, mas sou a favor da legalização. Não sou um "bandido"; o que eu defendo são seres humanos, reduzidos a um descritor negativo por causa de um ato, que não define o todo que eles são. Por trás de cada preso há uma história de vida; têm pessoas horríveis, tem pessoas que escolheram mal, tem pessoas inocentes e tem pessoas que não podem responder pelos seus atos, por razão de doença mental. Não são esse monstro caricato que é "o bandido" - e qualquer um pode se encontrar nessa situação, por erro, por desvio, por falha da justiça. São ainda pessoas, e devem ser tratadas  como tal. E sinceramente, acho que o humano menos direito é o "cidadão de bem" que tem uma tara por violência do porte do "bandido bom é bandido morto". 

Sugestão grotesca: usar presos como cobaias. Independente do Crime. 
O último é "quero ver dizer isso quando um desses animais tiver com uma arma na sua cara". Beeem... eu já fui assaltado cinco vezes; já fui espancado saindo de uma festa; já fui expulso de um ônibus por adolescentes xenófobos, e já fui ameaçado por "cidadãos de bem" por defender que jovens de comunidades carentes não fossem tratados como bandidos "preventivamente"; que conservadores e capitalistas fizessem suas próprias manifestações, ao invés de se apoderar das promovidas pela esquerda; por dizer que todos merecem um julgamento justo, entre outras - e mesmo assim, não acho que morte e tortura seja a solução. Como diria Salvor Harding, a violência é o último refúgio do incompetente - e é isso que o nosso sistema prisional é: incompetente, mantido por incompetentes e elogiado por uma população que cultua a incompetência.  E isso tem que mudar - antes que a sociedade inteira seja pior do que o pior bandido. 

Um único inocente punido invalida o sistema - ainda mais quando essa pena é tortura, ou morte. 

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