terça-feira, 29 de outubro de 2013

Do furacão que perdi.

A maior tempestade em 14 anos.
fonte: Conpenhagen Post
Nesta segunda feira, um fenômeno pouco usual passou pela Dinamarca, e parcialmente atingiu Aarhus. Pela primeira vez em minha vida, eu, acostumado com as nossas tempestades de vento e chuvaradas causadas por frentes frias, estive dentro da área de efeito - certo que na borda - de uma tempestade com força de furacão. No horizonte, vinham os ventos, com velocidade de até 194 km/h, como não vistoss no país desde 1999.

Depois de ter passado seis dos 12 meses de 2011 cobrindo tormenta após tormenta no Vale do Itapocu, eu estava animado: eis a minha chance de fazer aquele trabalho excitante outra vez! Sem meios para ir "a campo", eu esperei a tempestade passar para cobrir os danos, excitado, mesmo com sabendo da inevitável tragédia que antecederia minha chance de cobrir.

Mas nas redondezas do meu dormitório
, a extensão dos danos foi essa:
Alguns galhos caídos, e uma arvore
 parcialmente desenraizada
Esperei, e perdi: enquanto no centro de Aarhus os danos foram extensos e pesados, nas redondezas do pequeno dormitório em Ellemarksvej 64, na lateral da Marsellis Boullevard, os danos podiam ser resumidos e noticiados em uma única e desinteressante frase: "vendaval arranca dois galhos" - essa era quase toda a extensão do dano ao redor da Marsellis Boulevard. Dois gallhos, algumas placas de campanha, e um monte de folhas. À menos de 200 metros, uma árvore fora quase arrancada do chão - mas era só isso, nada mais.

Pouco mais longe, no centro, a caixa de luz de um semáforo foi arrancada de quebrada pelo vento. No centro o dano era mais extenso, e não foram poucos os galhos arrancados vistos, placas viradas, latas de lixo caídas, postes danificados - mas ainda assim, talvez graças a eficiência européia, talvez pelo meu azar, tudo já estava "limpo" - não peguei o mais grave durante a noite, e durante o dia nada mais havia para ser reportado. Ou sequer fotografado, já que o trabalho de limpeza estava feito muito antes de eu chegar em qualquer lugar.
fora arrancado pelo vento.
Pouco mais ao centro, semáforo 


Fora da cidade, estradas foram bloqueadas; linhas de trem desativadas; cabos de força foram cortados e árvores derrubadas; vidraças destruídas pelos mais variados objetos; carros virados e barrancos deslizaram. 71 Pessoas foram feridas e uma morreu atingidas por telhas, árvores e os mais variados objetos. Mais de cinquenta linhas de trem foram desativadas. Uma verdadeira tragédia - mas também material cheio para um jornalista. Pena que em um golpe de sorte - ou azar, tenho minhas dúvidas - escapei de qualquer risco. E também de qualquer história.

Longe do centro e em outras cidades, como Compenhagem
no entanto, danos foram extensos e pesados. fonte: Conpenhagen Post
E esse foi o furacão que eu perdi. Por um acidente do acaso, falta de ousadia, ou estar no lugar errado na hora errada, nada peguei além do som do vento e dois galhos caídos. Nada pode se comparar ao grau de frustração desse resultado; a total ausência de qualquer realização ou matéria como resultado de uma experiência inédita e incomparável.

Essa foi a maior tempestade que passou pela Dinamarca desde 1999; uma anomalia climática sem igual na história recente, e que deixou mais de 1 bilhão de coroas dinamarquesas em danos (cerca de 400 milhões de reais) segundo as primeiras estimativas (para fins de comparação, a de 1999 causou 13 bilhões de coroas em danos - 1% do PIB) - e eu a perdi. Então eis a minha história: como eu perdi a maior tempestade a atingir a Dinamarca em 14 anos, pelo capricho de estar em uma região que mal fora afetada. O máximo que ouvi foi o uivar dos ventos - o máximo que peguei após a tempestade, o pouco que não foi retirado. Deveria ter saído no vento e na chuva, desbravado o vendaval? Provável. Teria uma história melhor se como alguns colegas, estivesse na estrada, ou na estação de trem? Certamente.
fonte: Conpenhagen Post


Mas como não estava... perdi. E com isso.. fiquei com uma história de fracasso. C'est la vie.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Burocracia não é só "coisa do Brasil", e nem sempre é ruim.

O labirinto burocrático não é só "nosso" , mas muitos se
recusam a reconhecer isso. 
Muito se reclama da (admitidamente imensa) malha burocrática existente no Brasil - e com razão, visto que essa é uma inegável fonte de obstruções, lentidões e frustrações em todos os setores da sociedade. Mas há uma parte da constante reclamação sobre a burocracia brasileira que não é de forma alguma razoável:  a estranha ideia de que a lentidão burocrática existe apenas no Brasil, que o resto do mundo é desprovido de problemas burocráticos, e que só nós enfrentamos esse tipo de chateação.

Estou vivendo na Dinamarca há dois meses - uma experiência que tem sido reveladora (e me iluminado quanto a vários problemas pessoais, mas isso é outra história) - e já lidei com alguns pesadelos burocráticos desde que cheguei aqui. Para começar com os documentos: desde que cheguei, recebi já quatro documentos - e amanhã tenho que ir fazer mais um - cada qual com a sua pequena complicação. Os dois com menos problemas foram a NemID (um documento geral dos países nórdicos - e mesmo essa não foi sem transtornos¹) e a carteira de estudante da Escola Dinamarquesa de Media e Jornalismo. Tranquilos. Foram as únicas onde as vias para fazer eram óbvias. 

Sabe, não teria sido chato  fosse só a demora. O problema foi
a falta de sentido e de coerência. 
Já o CPR (vulgo a carteira de identidade/previdência social/saúde pública/tudo mais) foi um pequeno transtorno: O processo inicial foi tranquilo, e um período de espera de duas à três semanas não parece tanto quando tem que se levar em conta que é imigração. Até o ponto que o documento não veio. Aí fui atrás... em um processo que demorou muito mais tempo do que eu poderia imaginar

Duas vezes liguei para o Borgerservice: na primeira fui informado que "o documento estava no correio" e logo chegaria. Dois dias depois, ligo novamente e sou informado de que "não estava no sistema". Vou pessoalmente ao Borgerservice, e sou informado - depois de explicar o que havia me sido dito - que "meu yellow card estava no correio e logo chegaria", e que era para eu esperar mais uma semana. Depois de uma semana, lá fui eu em pessoal perguntar do meu documento outra vez... E o que tive de resposta? "O senhor não está no sistema, vai ter que fazer tudo de novo, venha amanhã com o seu passaporte e a carta do consulado concedendo o visto". E assim fiz... para ser informado que meu yellow card "estava lá havia 10 dias".

Mas esse incidente de incompetência não é o motivo pelo qual digo que aqui é um pesadelo burocrático. O fato é que tudo nos países nórdicos gira em torno de documentações, regras e regulamentações que muitas vezes não fazem sentido. Por exemplo: Aarhus é a segunda maior cidade no país, com 250 mil habitantes - uma cidadezinha para os padrões brasileiros, mas algo gigantesco para a Dinamarca. E apenas um banco na cidade realiza depósitos e transferências. Nada de depósitos ou transferências online, ou em caixa eletrônico, por exemplo. Quer abrir uma conta no banco? Você precisa da sua NemID. E depois tem que esperar de oito à 10 dias úteis para voltar ao banco para finalizar a abertura da conta. E isso se não houverem problemas. 

Burocracia não é bem isso. 
Quer imprimir algo na biblioteca estadual, fazer encomendas em algumas (muitas) lojas, comprar algo mais caro, um plano telefônico, alugar um apartamento em alguns casos? Tenha seu CPR em mãos. Precisa de atendimento médico e não é parte da União Européia? Tenha seu CPR em mãos. Documentos como esses são necessários para absolutamente tudo por aqui. E à um nível impensável para brasileiros. Claro - as reclamações mais comuns sobre a burocracia no Brasil dizem respeito a abertura de empresas e outras questões de negócios, e nesse sentido a Dinamarca está muito a frente: registro pode ser feito online (o que levanta a pergunta de porque a requisição de uma senha nova, por exemplo, não pode), e leva de duas à três semanas, ao contrário dos cinco meses do Brasil. Mas não é aquela perfeição toda. 

E aquele problema que tanto nos motivou a ir às ruas inicialmente (antes de gente que não estava nem aí para o que começou os protestos tomar conta), o preço das passagens de ônibus? Espantosos 20 kr por passagem (cerca de três euros). Há meios mais baratos, como passagens mensais (350 kr para um mês todo, cerca de 50 euros), mas ainda assim é uma facada. E caso seja pego sem passagem? A multa - administrada por uma companhia de segurança privada - é de "meros" 750 kr : 100 euros. Eu diria que a qualidade justifica - mas não justifica: até agora não vi um ônibus no horário, e já fui pego em uma cilada por um fiscal que entrou no mesmo ponto que eu, me multando antes que eu pudesse comprar minha passagem. 

Na teoria, é isso.
O fato é que burocracia é um problema mundial: é uma parte inerente da existência da infraestrutura estatal - ou me atrevo a dizer, administrativa - , e embora não tão ineficiente quanto a burocracia brasileira, a malha burocrática dos país desenvolvidos (salvo dos EUA, que é tão ineficiente quanto a nossa - pergunte a um americano, ou pesquise sobre a burocracia dos DMVs, por exemplo. Deixarei uns links sobre a burocracia americana ao fim do texto) é muito mais extensa do que a nossa. Só que é muito melhor gerida também. Enfrentamos problemas que incluem (mas não se restringem à) falta de comunicação entre departamentos, pessoal mal preparado e indisposto, corrupção e interesses escusos, falta de clareza nas normas, e conflitos entre regulações e leis estatais, municipais e federais. Talvez não haja obra melhor sobre o labirinto burocrático que as vezes se forma do que o Processo, de Franz Kafka - e o caráter surreal e onírico da obra diz muito do quão confusas são as vias burocráticas. 

Na prática muitas vezes vira isso.
Quando se pensa em governo, o que normalmente vêm em mente para a maioria das pessoas são os cargos eletivos - prefeitos, vereadores, deputados, senadores, governadores e presidentes. Mas isso é apenas uma face do governo, a mais "pública" dela. Claro, estes são os governantes e legisladores. Só que o verdadeiro trabalho é realizado nas secretarias, superintendências, departamentos e outros órgãos burocráticos que cuidam de "por a mão na massa" e transformar os planos de governo em algo real. E sim - estes são muito falhos, não por uma característica inerente, mas por problemas como os acima, e que podem (e deveriam há muito) ser resolvidos. 

A melhor maneira de pensar a burocracia (e como ela tem problemas) é pensar em governos como empresas: Ninguém é tolo de pensar que o CEO de uma multinacional é o responsável por cada ação da empresa, certo? O que se tem é uma malha de gerentes, subgerentes, diretores, executivos e administradores que vão repassando o plano de metas da empresa para algo concreto - e o mesmo acontece com o setor público. Isso é a burocracia: essa comunicação que no caso do Brasil é lamentavelmente falha, e no caso da Dinamarca... meio que cobra demais do cidadão, ao menos no meu ver. 

Pra quem acha que é só o estado que é burocrático
fonte: Murilo Gun
E é meio que cômica a obsessão que certos governantes brasileiros (cito aqui o eterno Luís Henrique da Silveira, para começar) com "descentralizar o governo" para reduzir a burocracia. A burocracia é justamente toda essa malha de setores e subsetores tentando se comunicar entre si para um fim em comum - criar mais subdivisões e outorgar mais autoridades regionais nada vai fazer para reduzir a burocracia, a não ser que o fim seja um governo "estadual" que na verdade são vários governos diferentes que não se falam - e aí o problema é mais embaixo. 

Sim, burocracia é um saco; é uma das coisas mais chatas do setor público (e como qualquer um que trabalhou sabe, é uma das coisas mais chatas dentro de empresas também, afinal a administração empresarial é ela também imensamente burocrática); Mas é também algo que é lamentavelmente necessário para a manutenção de qualquer forma de estrutura de proporções significativas, mais ainda de nível federal. Claro - a malha não precisa ser o caos que é no Brasil, mas dada às proporções será inevitavelmente avantajada. Só tem que ser bem cuidada. 


Mas que é chato é. E como. 

Dessa vez, os links ficam no fim do texto, para fins de organização

¹Entre outros transtornos: o sistema mudou minha senha sem me consultar; Para requerer outra senha, você tem que esperar a nova pelo correio; o telefone para o atendimento e suporte não funciona, os dois números disponíveis te quicam um para o outro como o anterior sendo invalido; 





quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Trolls, livre expressão e repercussões.

Em setembro deste ano, o jornal NewYork Post foi alvo de criticas por usuários anônimos após publicar um exposeé do paramédico Timothy Dluhos - mais conhecido no twitter pela alcunha de "Bad Lieutenant". Usando uma foto de Hitler com imagem de perfil, Dluhos postava diatribes racistas quase que diariamente, juntamente com comentários sexistas e homofóbicos, fotos de armas e ameaças. Após a exposição, Dluhos se demitiu para escapar de um processo administrativo, alegando ser "perseguido e hostilizado", e apoiadores lançaram uma série de ataques contra a repórter que o "desmascarou".

O maior troll da internet - ou era
Essa não foi a unica, e nem a ultima vez que a divulgação de um "troll" notório atraiu legiões anônimas em defesa do acusado, muitos alegando que seus crimes "não são de verdade". Em março de 2012, o site Gawker.com se envolveu em uma "guerra particular" com o Reddit. O motivo: a exposição de Michael "violentacrez" Brutsch, moderador de dois subreddits, os infames /creepeshots/ (fotos "intimas" retiradas sem o conhecimento da vítima) e /jailbait/ (com fotos retiradas dos perfis online de adolescentes). No entender dos usuarios do site, revelar publicamente a identidade de violentacrez seria um ataque a liberdade de expressão, muito mais grave que os frequentes discursos racistas, violentos, sexistas e em prol da pedofilia de Brusch.

Em julho, o chefe de polícia de Gilberton, Pennsilvânia Mark Kessler virou noticia na internet ao postar vídeos fazendo ameaças a membros de alto escalão da administração Obama, onde atirava em fotos de palhaços que serviam de proxies para John Kerry, Nancy Pelosi e o presidente Obama, dizia que iria matá-los, e que descarregar pentes inteiros era "o que deveria ser feito" com "liberais". Depois de virar "famoso" na web e ser alvo de críticas, Kessler passou a dizer que "estava sendo atacado e perseguido". 

Em março de 2012, os editores do blog Silvio Koerich foram presos na Operação Intolerância da polícia federal. O blog acumulou 69.729 denúncias por crimes de ódio. Segundo a polícia federal,  "As mensagens faziam apologia à violência, sobretudo contra mulheres, negros, homossexuais, nordestinos e judeus, além da incitação do abuso sexual de menores. Os criminosos também apoiaram o massacre de crianças praticado por um atirador em uma escola na cidade do Rio de Janeiro em 2011". Além disso, o nome do blog em si era criminoso, assumindo o nome de um usuário que havia criticado as declarações preconceituosas dos dois em fórums feministas. 


Esse tipo de "humor"
Este ano o Testosterona Blog perdeu o apoio financeiro da rede MTV depois de meses sendo criticado por conteúdo misógino (listado aqui). Entre outros problemas, o blog era conhecido por divulgar vídeos tratando estupro como um misto de piada e "direito do homem", compartilhar material do acima citado, promover a violência contra a mulher, e tratar espancamentos e homicidios conjugais como algo "engraçado". Caso similar ocorreu com a(s) página(s) Lobo da Insanidade, repetidamente removida do facebook por violações dos termos de uso, a série de páginas "de humor" tinham na sua "piada" central o imperativo "ESTUPRE".

É que abundava nas páginas citadas
Não é de hoje que o direito a livre expressão tem sido mal entendido. Não raro, ignora-se a parte que diz "vedado o anonimato", atropela-se a expressão alheia, considera-se que livre expressão significa estar imune a repercussões, veem se críticas como sendo censura, ataques como "opinião", e contradição como perseguição. Ao mesmo tempo, age-se como se "a internet" fosse alguma realidade alternativa, e as ofensas ali feitas não "valessem". O meme todo mundo conhece: a internet é "uma terra sem lei", onde todas as ofensas, calúnias e difamações, toda misoginia, racismo, elitismo e intolerância são permitidas e até incentivadas. A esquiva também: "é só minha opinião" e "estão tentando censurar minha liberdade expressão". "Não alimentem os trolls" se mistura com "no mundo real eu não faço isso" no estranho balé de trollagem e apaziguamento.

Vale lembrar que quando se trata de "opiniões ofensivas",
pessoas tem direitos, não idéias ou ações - ou seja: não se
abre possibilidade de alguém ser punido por difamar "uma
ideia" - como querem religiosos fanáticos ao punir por
difamar "o islã" ou "a fé cristã"
De fato, a liberdade de expressão é um direito essencial, mas isso não deve servir de prerrogativa para abusos: a livre expressão não é desculpa para ofensas, e menos ainda para calúnias, ataques e violações de direitos alheios. Não a toa existem leis cobrindo tais formas de expressão; falem o quanto quiser em "liberdade de opinião", mas acusar - sem provas - alguém de "defender a pedofilia", como foi feito com um certo deputado, postar imagens promovendo xenofobia, racismo, estupro e insinuando que "negro é tudo bandido", como feito pela página da PMFEM do Rio, pedir que se torturem presos, ou os usem para experimentos, ou chamar quem come carne de "carnista desprovido de empatia" e insinuar que cientistas são nazistas por fazer experimentos com animais (enquanto alguns dos tão empáticos vegans pedem pra que sejam feitos em pobres - errr... bandido¹) ainda são ofensas dignas de critica - quando não tipificam crimes. Ninguém deve ser punido por expressão, mas o resultado dessa expressão é outra história. Essa liberdade não incorre em esperar que ninguém reaja, critique, ou em casos extremos, levante queixas legais. Claro, o direito a crítica deve sempre permanecer - mas crítica não é inventar coisas, ou insultar, ameaçar e difamar.

O choro do racista exposto.
A expressão contrária ainda é livre expressâo - ou seja: se você defende a livre expressão irrestrita, você logicamente tem que defender o direito de outros de criticarem-no por sua expressão. Quando confrontado, Dluhos caiu no choro, se sentindo lesado pela repercusão de seus atos - e ignorou completamente que o problema não era a exposição, e sim o que ele fazia. Brusch foi demitido por defender e divulgar conteúdo que beirava a pornografia infantil e promover racismo e homofobia, entre outros motivos pelo qual à época se demonstrou completamente não arrependido. Redditors julgaram "injusto" que ele fosse punido pelo que disse "no mundo virtual". No caso de Dluhos, o departamento de bombeiros de Nova Iorque investigar um notório racista que pregava violência contra minorias foi tratado por internautas "preocupados" como "patrulhamento ideológico", quando não era "ditadura do politicamente correto". Em ambos os casos alegava-se que "a persona online" não interferia no mundo real.

Alguns chegaram ao ponto de comparar a "violação de privacidade" do autor de fotos intimas de meninas e o neonazista do twitter com "expor a identidade de lideres de movimentos civis". O que me levanta a pergunta: violentacrez nunca respeitou o direito a privacidade das garotas que fotografava ou postava online, porque teria ele o direito a privacidade? E que movimento civil ele representa, para considerarem sua exposição como "um ataque a liberdades civis"? O dos pedófilos homofóbicos e racistas? Dluhos é o legitimo representante dos neonazistas oprimidos? Seria o Testosterona blog um defensor do machista oprimido e agredido pela "opressão feminista"? O militarismo do policial Kessler seria a defesa do "gunnut" contra a estranha "violência" de quem quer uma sociedade mais igualitária e menos violenta?

Isso, só isso.
É um tanto óbvio que não são brancos racistas, homofóbicos e machistas quem tem sofrido com violência nos tempos de hoje - do contrário, não teríamos advogados acusando meninas de treze anos de mentirem sobre estupro, estudantes de jornalismo informados a usar a porta "de gente de país de terceiro mundo" e deputados alegando que o que os movimentos de direitos LGBT querem é "molestar crianças³", enquanto outro deputado diz que negros africanos são amaldiçoados, (mas nem todos, pois tem brancos na África).

Pode-se dizer que a internet hoje é como o cangaço ou o faroeste - uma terra sem lei. Mas fica a pergunta se a ordem nesses locais foi estabelecida com a presença da lei, ou a lei se estabeleceu como resultado da ordem? Não estamos mais nos tempos das Usenets, onde apenas um punhado de especialistas tinham acesso a internet, e qualquer coisa valia. Quanto mais usuários se fazem presentes, mais surgem formas de regular o que está acontecendo - e isso não é necessariamente ruim. Claro - não pode se abrir espaço para leis autoritárias, como o que ocorre no oriente médio, mas há de se coibir práticas criminosas, como discursos de ódio, pornografia infantil e difamações. Teme-se a mão pesada da lei, mas se ignora o fato que, evitando abusos, a lei há de ser sensata. Sim, temos inúmeros casos de artistas e políticos buscando tirar conteúdo da Web - sem sucesso, por não terem base legal para isso²; Não é com difamação e ameaças que isso será mudado - esse método só tende a dar a quem quer esconder algo os meios legais para isso. 

Não estou advogando por censura aqui, e sim por responsabilidade - correr adoidado espalhando falsidades e atrocidades é pedir pelo fim da liberdade na internet, da mesma maneira que redes sociais ignorarem o abuso constante é pedir para que os usuários ofendidos busquem a lei para ampara-los. O ideal, de fato, é que não hajam leis, exceto para extremos como pedofilia, calúnias organizadas e ameaças concretas de violência. E como qualquer pessoa sensata me oponho à existência de "órgãos de policiamento da internet" - qualquer queixa cabe a parte ou partes ofendidas, amigos e simpatizantes, e salvo exceções, serem resolvidas junto a empresa ou grupo que faz  o hosting do material ofensivo; a existência de órgãos e instituições para esse fim leva a corrupção e autoritarismo. Denúncias e queixas pessoais podem ser abusadas, mas não ao mesmo nível que "uma polícia da internet" que fique fiscalizando tudo que foi dito a priori

Claro que censurar o direito a críticas, opiniões políticas, divulgação de fatos (leia: não de fraudes), registro de irregularidades e de abusos por partes das autoridades, questionamentos da ordem pública e opiniões negativas sobre os "poderosos" e os famosos é um absurdo - mas o que defendo aqui é que isso não é motivo pelo qual deva se ignorar os males causados por opiniões em prol do ódio contra minorias, 

O que acontece, com ou sem leis. 
De forma curiosa, aqueles que mais clamam pela liberdade de expressão quando criticados são os que  mais cerceiam a liberdade alheia. Esta semana, um post do Deputado Federal Jean Wyllys criticando a conduta antidemocrática da bancada ruralista - que incluiu uma agressão física a outro deputado do PSOL - foi alvo de repetidas denúncias e removido do facebook, enquanto páginas e mais páginas pregando violência contra o deputado carioca se mantém no ar. Os grandes empresários são fortes defensores da livre expressão quando os interessa - e fortes opositores da mesma quando se dá na forma de denúncias e protestos contra os mesmos. o direito a Expressão muitas vezes está diretamente ligado ao dinheiro - chegando a extremos como o caso Citizens United, no qual a Suprema Corte dos EUA considerou que dinheiro e financiamento de campanha são igual a expressão.

Os defensores da livre expressão quanto ao discurso de ódio, e que acham que não critica e réplica são violações do seu direito de falar o que querem sem consequência. 

isso foi censurado...
Mais cedo neste mês, a página "Meu professor de história desistiu de mim", de critica e ocasional escárnio da ultra conservadora "Meu professor de história mentiu pra mim" foi removida. As fotos do ator gay Jesse Jackman com seu marido, Dirk Caber, foram removidas sem aviso e Jackman foi suspenso da rede social. A rede não ofereceu explicações para o ocorrido, e simplesmente colocou a imagem de volta no ar alguns dias depois - sem explicações. Jackman comentou o seguinte sobre o imbróglio: 
"[I have] received multiple public death threats after posting this photo, endured countless homophobic slurs, and received dozens upon dozens of hate-filled messages, and yet Facebook did nothing about those disgusting comments, choosing to censor love instead of hate."

Mas isso não.
Aquilo que o facebook supostamente proíbe - a realidade
é outra. 
Isso quando o argumento da livre expressão não é usado em resposta a exclusão, ou a moderação em um forum online, ou ao banimento de usuários problemáticos. Não poucas vezes, apesar dos insultos diretos ao usuário excludente, o excluído age como se ser amigo online fosse seu direito - e as vezes, veem se defesas dessa mentalidade (que parece estar relacionada as falácias sociais nerd, particularmente a que diz que nunca se excluí alguém, caso contrário você é o problema). No facebook, usuários com contas falsas - em si uma violação dos termos de uso - reclamam de moderadores "desrespeitando seus direitos" ao deletar ofensas, ameaças e calúnias, imagens pornográficas e violentas, spams e "trollagens" assumidas; todas violações dos termos de uso que eles "aceitaram", aparentemente sem ler.

O ponto que quero chegar é simples: sua expressão é livre - o estado não vai te impedir de dizer algo - mas isso não quer dizer que esse direito atropele todas as regras de convivência, especialmente aquelas do espaço onde você se encontra. Você não é imune a repercussões de seus atos, ou declarações, não importa o quanto diga que é "só minha opinião" ou "é só uma piada". Ser sua opinião não quer dizer que ela não é preconceituosa, intolerante e ofensiva, assim como o fato de ser uma piada não diminui a ofensa - dependendo da piada, aumenta. Ainda mais coisas como, enfrentando criticas por comentários racistas, perguntar quantas bananas o interlocutor quer pra ficar quieto. 

Você não tem direito algum de ser amigo de alguém, e ninguém tem obrigação de se manter seu amigo, especialmente quando você continuamente ofende essa pessoa, seu grupo social, ideologia, ou etnia. Por último: se vai defender a liberdade de expressão irrestrita... não reclame das críticas. Afinal, elas nada mais são do que o livre exercício da expressão. Sejam consistentes, ao invés de hipocritamente tentarem censurar quem os crítica - na base da violência, muitas vezes, como se vê dos defensores da livre expressão irrestrita quando se trata, por exemplo, de minorias, movimentos anti-capital, ou manifestações "que incomodem". Porque expressão contra o Status Quo já é vandalismo. Da mesma maneira, redes sociais e webhosts tem a obrigação de dar respostas condizentes as queixas prestadas - e não meramente atender umas por terem "maior volume" enquanto deixa de lado queixas contra conteúdo explicitamente ofensivo. Sejamos coerentes. 

P.S.: fazer humor "politicamente incorreto" não te faz revolucionário e inovador - se qualquer coisa, lhe marca como retrogrado; todas as piadas racistas, machistas, anti-semitas e homofóbicas, centrada em velhos clichês e esteriótipos de "comediantes" como Danilo Gentili e Rafinha Bastos já eram velhas quando meu pai estava na escola. Chamar negro de macaco, judeu de sovina e mulher de puta não é inovador. É coisa que deveria estar batida desde que negros e mulheres tiveram seus direitos garantidos.

¹Não querendo atacar o ponto de vista vegano, ou sequer o site Consciencia.blog.br - que usa esse termo com frequência - mas sim ressaltar que é de fato aceitável que pessoas se ofendam com isso. Estou plenamente ciente de que o Consciencia.blog.br é contra a experimentação em humanos, mas não foram poucos os defensores dos animais que vi defendendo essa excrecência recentemente. 

²O resultado usual dessas tentativas de esconder podres, fotos embaraçosas e denúncias é aumentar a dispersão dessas informações - o chamado "Efeito Streisand", em "homenagem" a cantora Barbra Streisand, que em 2003 tentou barrar fotos de sua mansão em Malibu, 

³Depois dessa ofensa de classe, Jair Bolsonaro agora está alegando que a BBC e Stephen Fry estão difamando ele e distorcendo a sua fala, que de homofóbica não teria nada - apesar de ser uma cópia quase verbatim do líbelo de sangue contra os judeus (exceto que com sêmen? líbelo de sêmen?). A fala específica foi : “Eles querem que os heterossexuais continuem gerando crianças, para que essas crianças se transformem em gays e lésbicas para satisfazê-los sexualmente no futuro”

domingo, 6 de outubro de 2013

Da ATEA e o Islã...

Me surpreende como uma entidade que se diz de "combate ao preconceito religioso" pode papagaiar um dos mais notórios discursos de intolerância religiosa no presente - e mais ainda como uma instituição que se propõe a combater os males do fundamentalismo cristão repete o discurso deste mesmo setor.

Não custa ter um pouco de conhecimento, empatia e compreensão para entender que o fundamentalismo islâmico não representa todo o islã, e nem sequer uma parte considerável dele - assim como Feliciano e Malafaia não representa todo o cristianismo, e a ATEA não representa todo o ateísmo. Os problemas do fundamentalismo islâmico não são inerentes ao credo - são sim representativos de estados fragilizados, onde a carência de uma identidade nacional e humanista faz com que grupos se virem "para dentro" em busca de afirmação e segurança, resistindo violentamente contra aquilo que julgam uma ameaça a sua identidade.

E esse padrão só tende a ser agravado quando membros dessas comunidades marcadas pela insegurança migram para fora de seus grupos e são hostilizadas em seus novos países de residência - se antes careciam de segurança, agora se sentem (e de certa maneira, com razão) ameaçados, e para defender seu estilo de vida firmam-se ainda mais no radicalismo. O discurso ignorante da ATEA não tem nada mais a fazer se não fortalecer o fundamentalismo islâmico, dando-o a ver mais "provas" de "perseguição".

Qualquer semelhança com o fundamentalismo cristão - típico de comunidades marcadas pela identidade de credo acima da identidade nacional ou humanista - não é mera coincidência. O problema não é o credo, mas quando o ser muçulmano, ser cristão, ser roqueiro, ser comedor-de-chocolate-com-flocos-a-meia-noite-de-terça pesa mais do que ser humano, e aqueles que não pertencem ao "grupo" são vistos com desconfiança.

Claro, certos grupos religiosos fomentam essa mentalidade. A ATEA cada vez parece fazer o mesmo. Não é o caso do Islã como um todo, conheço muçulmanos tolerantes, progressistas e que repudiam fortemente o fundamentalismo - e não são minoria. Concordo com o Eli, a ATEA não tem lugar numa comissão dedicada a tolerância religiosa. Manter a entidade em tal comissão faz tanto sentido quanto Feliciano na comissão de direitos humanos, ou Blairo Maggi na comissão de meio ambiente.