terça-feira, 24 de novembro de 2015

Síria: Turquia abate jato russo e ameaça reacender a Guerra Fria.

Ação turca reacendeu hostilidades e azedou relações
Esta terça feira (24 de novembro) se abriu com más noticias: a destruição de um caça russo na fronteira da Turquia com a Síria pelo governo da Turquia pode ter reacendido as chamas da guerra “fria”. Com certa razão, o presidente russo Vladimir Putin descreveu o incidente como “uma facada nas costas” e uma “traição”, chamando o presidente turco Recep Tayyip Erdogan de “cumplíce do ISIS”. 

A Turquia,  por sua vez, diz que seu espaço aéreo foi invadido. O que não justifica o abatimento da aeronave. O primeiro ministro turco, Ahmet Davutoglu, justificou a ação alegando que a Turquia tem todo o direito de proteger suas fronteiras. "Todo mundo deve saber que é nosso direito internacional reconhecido e nosso dever adotar todas as medidas necessárias contra qualquer coisa que viole nosso espaço aéreo ou nossas fronteiras", afirmou o primeiro ministro. 


As repercussões disso são preocupantes. As operações militares contra o Estado Islâmico foram prejudicadas, e o grupo terrorista foi o único beneficiado da ação turca, como parte do curioso ardil 22 que cerca a região: bombardear o EI gera momento e rancor para recrutar mais “combatentes”. Não o bombardear lhe dá a oportunidade de se fortificar e se estruturar. Mas os problemas mais graves estão além do Daesh:  A possibilidade de uma retaliação russa contra a Turquia arriscaria deflagrar um conflito muito maior - como membro da Otan, Ankara contaria com o apoio dos outros países membros, resultando em uma guerra mundial, caso seus aliados intervissem contra a Rússia.


Da mesma maneira, há o perigo de um “ataque preventivo” contra a Rússia, para “evitar” uma ação militar contra os turcos. Esses são os quadros mais graves - o mais plausível é que a situação seja resolvida diplomaticamente, mas as relações Rússia-ocidente ficaram (mais) azedas após o ocorrido. Moscou já havia deixado claras suas intenções de impedir uma intervenção Turca na Síria em outubro, e Ancara parece ter mais interesse em reprimir os movimentos curdos do que em combater o Estado Islâmico.


É claro que a Turquia está dando desculpas para o ocorrido: trate-se de mais uma parte do longo jogo de poder envolvendo a Síria, Assad e a minoria curda, ou de um acidente causado por incompetência e zelo excessivo, os jogos de poder da região pintam um quadro péssimo para Turquia. Parte da repercussão em cima do caso, como tem se tornado costumeiro, joga a responsabilidade das ações Turcas nos EUA e na União Européia. Há de se lembrar que os interesses da Turquia são interesses da Turquia, assim como seus atos. Que estes sinergizem com os dos EUA e da UE, não significa que as ações sejam “a mando de Washington e Berlim”.

Há um grande conflito de interesses quanto a Síria: Para os russos e a União Européia, há legitimidade nas milícias curdas combatendo o EI, mas para os turcos,  grupos  como a PKK (O Partido dos Trabalhadores Curdos, milicia marxista curda) e os Peshmerga são terroristas; da mesma maneira, enquanto os Russos mantém o apoio ao presidente Bassar al Assad (que não tem legitimidade ou controle do país), a União Européia, os EUA e a Turquia querem sua queda - mesmo isso arriscando desestabilizar o país ainda mais. Agravando a situação, um helicóptero enviado pela Rússia para recuperar os pilotos do avião foi atingido por rebeldes sírios armados pelos EUA. O helicóptero fez uma aterrissagem forçada em uma base aérea controlada pela Rússia.


Vale lembrar que tanto a Rússia quanto a Turquia estão longe de serem pacíficas.  Enquanto o discurso militarista americano é repetido dia a dia em todo o mundo, o discurso político destes dois países é restrito a notas nos jornais e seus canais “oficiais” de comunicação, dando a ilusão de que o apoio à guerra seja uma exclusividade ocidental. A ilusão de que os russos não apoiem o uso de força militar é apenas isso: uma ilusão.


Do contrário, ambos tem uma longa história recente de guerras. Em 1996, a Rússia invadiu a Chechênia, para suprimir um movimento separatista secular na região. Em resposta a invasão russa, o acadêmico e guerrilheiro muçulmano Akhmad Kadyrov deu inicio a uma “jihad” contra a Rússia. Após uma derrota contra os mujahideen e a  auto proclamada república da Ichkeria, os russos novamente invadiram o país em 1999, dando início a uma guerra de 10 anos, a dissolução da República da Ichkeria, e a continuidade do controle russo sobre parte da Chechênia*.

Em 2008, os russos invadiram a Georgia, alegando defender as auto proclamadas repúblicas da Abkhazia e da Ossétia do Sul. O auxílio armado a grupos secessionistas se repetiu em 2014, com a invasão da Crimeia após a desestabilização da Ucrânia. A secessão  da Crimeia (e sua imediata anexação a Russia) foi seguida pela invasão de Donetsk e Luhansk - novamente apoiando o mesmo tipo de “revolução” a qual a Russia se opõe na Síria. Hoje, a Ucrânia se vê tomada pelo conflito e pelo crescimento de movimentos nacionalistas ucranianos e russos - ambos flertando com a extrema direita.


Para os turcos, a PKK e outros grupos turcos são
um problema maior. Foto: AFP.
Já a Turquia está envolvida desde 1978 em um conflito armado contra milicias curdas no país, sem que haja qualquer tentativa de negociação. Em 1997, o país “interviu” na guerra civil curdo-iraquiana, um conflito armado entre grupos curdos no Curdistão iraquiano, com resultados extremamente violentos - em 2011, a força aérea turca matou 34 civis curdos na aldeia de Roboski “em uma ação anti terrorismo”. Segundo o governo turco todos os mortos eram “traficantes e contrabandistas”. Ancara também impediu a entrada dos corpos de milicianos curdos mortos em combate com o Estado Islâmico.


O país é um dos mais envolvidos no conflito Sírio - não sem motivos, dado que a Turquia faz fronteira com o país. Essa proximidade faz da Síria alvo de muito interesse pelos grupos políticos turcos, especialmente quanto aos Curdos e Armênios. Enquanto a Rússia é acusada de centrar seus ataques contra os rebeldes, a Turquia abertamente foca seu poderio militar contra os Curdos, em detrimento de ações contra o Estado Islâmico - que é usado como bode expiatório para os excessos das forças armadas, e praticamente ignorado quando mira nos curdos.


O que quer que venha da ação desastrosa da Turquia, não é de agora que o país está em uma situação crítica. Haverá um grande preço a pagar por isso, seja diplomaticamente (esperemos) ou militarmente (um preço que pode ser alto para todo o mundo, caso o resto da OTAN não vire as costas para Erdogan). O incidente desta terça-feira pode ter sido o estopim de uma guerra Russo-Turca - e por extensão, de uma terceira guerra mundial. Esperemos que não seja o caso.

*As sucessivas guerras da Rússia contra a Chechênia se estendem desde antes da Chechênia existir como nação: a Rússia Czarista tentou tomar a Chechênia na guerra do Caucaso (1817-1861) e as tentativas de controle russo da região se repetem desde então.

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Estadão sofre ameaça de bomba. E agora?

Anos antes, na ditadura, o jornal foi alvo de uma bomba:
poderia a história se repetir?
Nesta segunda-feira, por volta das 16h, a sede do Jornal Estado de São Paulo foi evacuada após uma ameaça de bomba, feita pelo telefone O motivo da ameaça não foi esclarecido. Mas independente do que seja, e de quem sejam os autores, um ocorrido destes é preocupante. Assim como é preocupante que se trate de um assunto desses com leviandade e trivialidade.

Um risco de bomba na sede de um dos maiores jornais do país não é algo trivial. Como trote, é um trote não apenas sem graça, mas irresponsável.  Se a declaração foi sincera (ou tinha a intenção de realmente intimidar os jornalistas), no entanto, é um possível sinal de que a radicalização política (independente de lado) no Brasil já não tem mais vergonha - o que deveria ter se tornado claro quando jogaram uma bomba na sede do Instituto Lula. Também pode ser sinal de um ex-funcionário descarregando frustração de forma doentia, ou alguém com um senso de humor muito pervertido.

Independente da causa, no entanto, é lamentável e absurdo que um jornal seja alvo de ameaças de bomba em um país que se diz democrático, e que essas mesmas intimidações sirvam de base para acusações e piadinhas.  Não importa se você apoia ou não as posições político-ideológicas do Estadão: não é assim que se lida com uma discordância discursiva.

Há de se lembrar que durante a ditadura, o Estadão - notório por substituir matérias censuradas por receitas de bolo e outras trivialidades - foi alvo de um atentado à bomba, em 16 de novembro de 1983. O objetivo do atentado, armado pelo ex delegado do DOPS, Cláudio Guerra, era incriminar e desmoralizar a esquerda.

Piadinhas e acusações marcam os comentários.
A hostilidade contra a imprensa tem se tornado uma coisa cada vez mais comum, como demonstram os casos de agressões verbais contra repórteres em manifestações. Este não é um problema nacional: há casos de violência verbal e física contra repórteres em protestos nos EUA, no México e em grande parte da União Européia. Discordância quanto ao foco, tom ou conteúdo da cobertura vira motivo para agressividade, e mês passado, um repórter do Buzzfeed foi fisicamente agredido em um protesto da Jewish Defense League, por “ter dado uma cobertura demasiadamente pró palestina”.

Tampouco se restringe a casos tão “leves”: segundo o Comitê para a proteção de Jornalistas, a violência contra profissionais da imprensa tem crescido consideravelmente nos últimos 12 anos. E o Brasil ocupa uma posição nada agradável no ranking, com 4 jornalistas mortos pelo DOPS em função de seu trabalho em 2015.

Ao menos o incidente do Estadão se resumiu a um susto, no fim das contas. Se havia ou não uma bomba não foi divulgado até o fechamento deste texto. Esperemos que isso não sirva de inspiração para outros “revoltados” e outros “engraçadinhos”. A última coisa que o Brasil precisa é de atentados em jornais.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Os critérios e os riscos da cobertura de terrorismo

Uma visão simplista. O recorte existe, mas não é tão claro -
e nem são os outros conflitos ignorados.
Há muita gente que reclama que a imprensa não dá uma linha sobre *insiraatentadoaqui*, enquanto compartilha reportagem sobre o mesmo atentado. A coerência começa a se perder aí: quando se usa a cobertura de algo para alegar que a cobertura não existe. Da mesma maneira, alegam que a cobertura imediata de um evento inesperado significa a total ignorância de outros eventos do gênero (um dos quais, o massacre de Garissa, ocorreu em abril, e foi a época coberto com exaustão por agências de notícias e noticiários internacionais). 

Mas a narrativa vai além, alegando que um atentado no centro de uma região de conflito com acesso limitado da imprensa por questões logísticas e de risco não ter exatamente a mesma cobertura que sete atentados coordenados em uma das maiores cidades do globo, com jornalistas 24 horas e em um país que não é marcado por violência deste tipo é uma coisa só: a imprensa é "racista e quer ver negros morrerem". E o desconhecimento popular sobre não é resultado do combo de -local distante e vago, portanto não familiar- com fadiga de compaixão por ouvir histórias de violência sobre a África a tal ponto que se tornou rotina: é porque as pessoas são todas "racistas e querem ver negro morrer". 

Quantas pessoas vocês conhecem que foram para Paris? Quantas imagens de Paris fazem parte do imaginário popular? O quanto sabem sobre a Nigéria? Sobre Bagdá? Todo mundo conhece alguém que foi para paris, ou que sonha em visitar a Cidade Luz. A Nigéria, no entanto? Para os olhos da maior parte da população, é tão familiar quanto o Uzbequistão, a Geórgia ou o Laos. Não é por racismo: nos atamos ao que nos é familiar. O desconhecido é vago demais para gerar um laço emocional, e nossa psicologia, infelizmente, dificulta em muito a compreensão do que é alheio a nossa experiência. Da mesma maneira existem fatores geopolíticos que pesam na decisão: o quão influente é a Nigéria? Sim, é uma tragédia. Mas que impacto isso tem no resto do mundo? Que impacto tem uma série de ataques na capital da França? São questões diferentes. E que vão influenciar em quanto tempo e espaço pode ser disposto para cada história. 

Outro fator ignorado: estados tem um poder considerável para obstruir ou facilitar o trabalho da imprensa. Nos estados mais vitimados pelo terrorismo e pela violência política, o trabalho jornalístico se encontra ameaçado por milicias, cartéis e terroristas, mas também pela ação de governos com pouco interesse em "jornalismo honesto" sobre o que ocorre em seu país. Corrupção, prisões arbitrárias, confiscos, desaparecimentos e agressões são eventos recorrentes com jornalistas nestes países. Indo cobrir a guerra civil na Síria, em 2012, o jornalista brasileiro Kléster Cavalcanti foi preso e torturado, sob alegações falsas. Essas ações, assim como 57% das mortes de jornalistas no país nos últimos 23 anos (segundo o Comitê para a Proteção de Jornalistas), vieram não de grupos terroristas, mas de agentes do governo de Basshar Al Assad. A cobertura jornalista nesses locais exige assumir riscos cada vez maiores. Sem presença in loco o máximo que pode ser feito é isto: análise, e notas com dados oficiais e postagens online. 

Essa narrativa reducionista parece algo que sairia de uma caricatura maliciosa de um esquerdista, mas não é. É uma narrativa torpe recorrente por certos ativistas, coletivos e páginas de esquerda que parecem nunca ter estudado nada sobre como o mundo funciona, se prendendo a uma narrativa pronta e simplória de "opressor e oprimido". Os mesmos que repetidas vezes pintam o terrorismo como sendo "a reação do oprimido contra o imperialismo". E bizarramente, as mesmas pessoas que hoje tentam reescrever a história dizendo que a imprensa não deu uma única linha sobre as duas guerras mais noticiadas da história: Iraque e Afeganistão. Que não cobriu em nada o caos na Síria - uma história continuamente reportada apesar a impossibilidade de se conseguir um jornalista no front seguramente. 

Não: é tudo simplesmente "o racismo", só isso. Fadiga de Compaixão, familiaridade, proximidade, critérios de noticiabilidade, logística, tempo, imprevisibilidade, relevância, importância geopolítica, proximidade cultural, nada disso importa: é só racismo e a luta do oprimido contra o opressor. Só isso. Um simples mundo maniqueísta que o único critério de noticiabilidade é "tem gente branca? não? joga fora". Um mundo em que toda história pode ser coberta 100%, e que não há motivo para fazer uma seleção de pautas, de intensidade, de tempo de cobertura, de relevância: é malicia mesmo. 

Temos 42 conflitos armados em 2015. Isto descontando eventos inesperados e imprevisíveis (como eventos de violência extrema em locais onde eles não são recorrentes). Não há como esperar que um conflito em que a obtenção de informação é bloqueada por barreiras linguísticas, a infraestrutura de transmissão de informação é precária, e o risco para os jornalistas envolvidos nessa cobertura é elevado (a Nigéria é o segundo país da Africa subsaariana onde a morte de jornalistas é tratada com mais impunidade, segundo o Comitê para a Proteção de Jornalistas) seja tão coberto quanto um evento cuja cobertura enfrenta menos obstáculos. O caso específico da Síria é um de risco extremo: em 2014, 19 jornalistas foram assassinados no país. Tampouco há como cobrir todos estes eventos: não existem correspondentes de guerra para tanto, o jornalista internacional e o correspondente de guerra são cada vez mais uma espécie em extinção, sendo substituídos por "citizen journalists" e fontes oficiais com frequência cada vez maior, e essas fontes são enviesadas, limitadas e não raro, pouco confiáveis - basta ver a frequência com a qual fotos de conflitos são postadas por citizen journalists em redes sociais como pertencendo a contextos, locais e épocas distintas de sua origem, para pressionar uma reação da imprensa. 

Um fator importante a ser lembrado na cobertura de guerra - como se aprendeu bem com a cobertura 24hrs do Iraque e do Afeganistão - é que os eventos de uma guerra são "tédio pontuado com medo" e ações de rotina, como nota Robin Brown, devido a cobertura ser muito mais rápida do que os eventos. O que preenche a imprensa não com reportagem (que rapidamente se torna repetitiva) mas com especulação e análise - e o trabalho da mídia molda como o conflito é percebido e como os governos respondem a situação. Isso, por sua vez, fortemente reduziu a capacidade destes governos em definir como seus cidadãos enxergam a guerra. Mesmo a analise pode alcançar um ponto em que, para as audiências e para os jornalistas, se torna cansativa e enfadonha: há um limite para quantas vezes o público pode ouvir as mesmas coisas sendo ditas a respeito do que deve ser feito, quem são as partes e quais são as implicações. E este limite de tolerância parece ter se reduzido com o advento das redes sociais (nota minha). O resultado para o nosso caso em especial, da cobertura precária de certos conflitos? Reduz se o quanto o público está disposto a ouvir sobre um conflito. E o interesse deste público em buscar informações sobre.  

Criticas devem ser bem pensadas. Critérios de noticiabilidade existem, e alegar que tudo se resume em racismo e preconceito vai além da ignorância: é simplificar e desmerecer o trabalho de jornalistas que fazem o possível para cobrir a quantidade imensa de histórias que chegam todos os dias, e ignora que simplesmente é impossível cobrir igualmente todas as tragédias. É cruel, mas algumas pesam mais - talvez porque suas ramificações vão além de um conflito local. Os atentados de Paris foram um prenúncio do que está por vir, e deflagaram uma onda de xenofobia pelo Globo. O que ocorreu na Nigéria foi um capitulo de uma história que tende a se manter presa a Nigéria. Garissa, por mais horrível que tenha sido, é uma questão Quêniana. O Boko Haram e a milicia Al-Shabab são grupos locais. Suas ações são tragédias e atrocidades, sim. Mas que afetam os habitantes destes países, e que tem implicações no resto do globo. O EI? Se demonstrou além de fronteiras. Isso preocupa, isso causa medo. Isso quebra os padrões de ação do grupo. Isso é extremamente noticiável - e não só porque "afetou gente branca e o seu sonho de turismo". 


Obviamente que isso não isenta a imprensa de suas falhas recorrentes, de sua conivência com grupos de interesse, ou o poder que audiência e financiamento tem em determinar suas pautas. Ou sequer que certos grupos de imprensa (mas de forma alguma toda a imprensa, como tem sido sugerido) sejam abertamente racistas e xenófobos em sua decisão de pauta. Menos ainda que não haja muito a ser repensado em como essa seleção é feita, e no framing dessas histórias (o que é outra questão, não ligada tanto a o que é coberto, mas como é coberto). Mas reduzir tudo a uma narrativa simplista de "preconceito e falta de empatia" beira o absurdo.

Sim: há um problema grave com o trabalho da imprensa. Um problema que vai além de suas limitações operacionais, e que incluí os impactos do ciclo de noticias 24hrs, os interesses do público e dos acionistas, a fadiga de compaixão das audiências - fartas de ouvirem as mesmas histórias, a ponto de se tornarem apáticas - e o sucateamento das equipes de reportagem. Isso tudo vai mundo além de mero "são negros/árabes/mexicanos, quem liga". Tem muito a mudar, e muito a melhorar. Mas criar uma narrativa maniqueísta que atribuí os problemas a malícia não vai fazer isso. 

Quanto a maneira em que a mídia cobre terrorismo, encerro com uma recomendação de literatura básica: Framing Terrorism: The News Media, the Government and the Public. É uma excelente análise das relações que cercam o jornalismo sobre terrorismo, e de onde vem as colocações de Robin Brown acima. 

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Não, o inimigo de meu inimigo não é meu amigo

Os eventos recorrentes no Oriente Médio e sua repercussão nos últimos dias revelam a prevalência de um dos mais preocupantes adágios populares: “o inimigo de meu inimigo é meu amigo”. Em sua sana por sentido, retribuição ou “justiça”, formadores de opinião e leigos se mostram muito dispostos a relevar quaisquer ações condenáveis para encaixar seus atores como os “heróis” de sua narrativa.

Não é de hoje que essa mentalidade tem marcado a política internacional e as relações sociais. É um tema recorrente, no “cidadão de bem” que apoia a ação de justiceiros e ignora seus crimes, aos governos ao redor do mundo que financiam terroristas para fazer o que eles não podem, passando por nosso legislativo e nossos revoltados que apoiam um corrupto “seu” para derrubar “a corrupção”.

Algumas vezes a motivação tem toques de pragmatismo: durante a ascensão do nazismo, o então primeiro ministro da Inglaterra, Neville Chamberlain adotou uma política de apaziguamento em relação a Alemanha. Os crimes nazistas eram uma questão “menor” contanto que eles contivessem “as hordas comunistas”. Seu sucessor, Winston Churchill, fez o oposto, se aliando temporariamente aos “vermelhos” para enfrentar Hitler. É inegável, no entanto, que Chamberlain simpatizava com Hitler. Ou que Churchill não via problemas em quebrar a aliança assim que Hitler caísse.

Durante a guerra fria, os EUA e a Rússia financiaram guerrilheiros e combatentes para travar, nos Estados “não alinhados” a guerra ideológica que não podiam travar abertamente. As tentativas dos dois de controlar o Irã resultaram na revolução iraniana, a primeira das teocracias fundamentalistas islâmicas.

Para combater o Irã, os EUA armaram Saddam Hussein - que depois se tornou seu inimigo ao invadir o Kuwait. No Afeganistão, os Talibãs foram a “peça chave” para derrubar os soviéticos e imediatamente se viraram contra seus tutores.

Por sua vez, a União Soviética armou e treinou tiranetes como Pol Pot e a dinastia Kim, que a moda de Stalin rapidamente trataram de reescrever sua história em uma narrativa sem a ajuda soviética.

Na América do Sul e na África, as consequências dos golpes de estado e das milícias criadas pelas duas potências perdura até hoje - e poucos destes grupos serviram os papéis designados por seus treinadores.

Estes casos, assim como o supracitado financiamento a terroristas e guerrilheiros (recurso tão velho quanto a própria noção de relações internacionais) são manifestações cruéis e claras da Realpolitik, sem o verniz idealista do discurso público. Mais preocupada com as implicações reais da política do que a construção ideológica, a Realpolitik é um jogo complexo e sujo, que pede ocasionais alianças com quem tem inimigos em comum - e essas alianças não raro resultam em problemas graves para administrações futuras.

Hoje, a União Européia e os EUA têm como “aliado” a Arábia Saudita ,tão autoritária, violenta e anti-ocidente quanto o Estado Islâmico, mas de valor estratégico. A incoerência faz parte do jogo. Infelizmente.

Essa Realpolitik desconcertante se viu durante a Primavera Árabe e nas guerras do Iraque e do Afeganistão  - quando potências ocidentais armaram rebeldes, senhores da guerra e milícias não alinhadas com seus interesses para derrubar um “inimigo em comum”.

De parte deste plano surgiu o atual Estado Islâmico.  Que por sua vez foi respondido com novas alianças “de necessidade”, com grupos antes considerados terroristas - como a PKK curda e a Frente Islâmica da Síria.

Mas outros casos, mais preocupantes, advém de um idealismo torto. Movidos por distorções ideológicas, tecem uma nova narrativa onde o inimigo de seu inimigo é seu amigo não por “política”, mas por “ser heroico”.

É o caso de quem defende a ditadura por “ter combatido os comunistas”, de quem defende abusos da polícia por que “ela mata bandido”, e de quem defende incondicionalmente as ações militares no Oriente Médio “por matarem terrorista”. Ou de quem exalta a os movimentos de extrema direita em ascensão na Europa por “combaterem o terrorismo”. O conservadorismo sempre foi afeito a louvar as defesas violentas do status quo.

Mas é também o discurso de uma parcela não negligenciável da esquerda. Em sua oposição (justificada) ao imperialismo e a hegemonia americana, alguns pensadores e simpatizantes da esquerda veem em qualquer inimigo dos EUA um herói contra o imperialismo, vítima de calúnia e perseguição. O professor de jornalismo Kevin Williams nota que em tempos de guerra, o jornalismo as vezes aje como se houvesse algo “mais importante que a verdade”. Essa mentalidade parece ter contaminado os opinadores de esquerda, especialmente nessa era de comunicação instantânea.

Assim, criam obras fantásticas de revisionismo histórico: O Japão imperial passa a pobre vitima “da sede de sangue” Americana. A Al Qaeda passa de uma milícia teocrática para “uma revolta contra o imperialismo”. Slobodan Milosevic deixa de ser um genocida corrupto que coordenou uma limpeza étnica no Kosovo para ser um “nacionalista punido por resistir aos opressores”. Ghadaffi e Assad tiveram seu histórico de repressão apagado em prol de uma narrativa de “resistência heróica”, que minimiza os protestos e a insurgencia que tomou a Líbia e a Síria como sendo “mercenários ocidentais”. O complexo caos da Ucrania, marcado por anseios de poder e corrupção por agentes ocidentais e russos vira uma trama maniqueísta onde a heróica Rússia “garante a autodeterminação dos povos” contra a tirania do ocidente.

Putin talvez seja o melhor exemplo desta mentalidade entre a esquerda. O ex-agente KGB ligado às oligarquias conservadoras da Rússia jamais escondeu sua tara militarista. Mas suas intervenções na Estônia, na Ossétia, na Ucrânia e na Geórgia,  ao invés de criticadas, foram aplaudidas ou ignoradas pelos mesmos que condenavam os EUA por suas intervenções militares. Apesar do seu governo ser autoritário, expansionista, reacionário e extremamente homofóbico - progressivamente cerceando os direitos de lgbts no país - Putin é visto por muitos como um herói progressista, somente e tão somente por sua oposição aos EUA. De sua própria política externa violenta e imperialista, nada é dito.

E agora, em reposta aos eventos em Paris, há quem tente reescrever a narrativa do Estado Islâmico como “a fúria dos povos oprimidos”. O estupro sistemático,  a homofobia violenta, o ódio teocrático, as execuções e o culto apocalíptico - tudo isto é jogado sob o tapete para pintar a situação como um caso simples de “oprimidos se virando contra a tirania do ocidente”. Na melhor das intenções, fantasiam um dos piores grupos da atualidade como heróis incompreendidos. Sem imaginar que seus heróis que “feriram o coração do imperialismo europeu” não hesitariam em fazer o mesmo contra eles. E ignorando que muito mais do que atacar “o imperialismo ocidental”, o EI foca sua tirania naqueles que essa parcela da esquerda julga defender: os já violentados cidadãos do Oriente Médio.

O inimigo do meu inimigo raramente é meu amigo. É só o inimigo do meu inimigo. E pode muito bem ser dos males o pior. Da direita reacionária, movida primariamente a emoção, não se deve esperar muito diferente. Mas do resto do debate político, na direita e na esquerda, especialmente de quem diz defender direitos humanos, a verdade tem de vir antes. Não aquilo que mais “interessa” a sua narrativa de bem e mal, certo e errado. Não dá para defender ou se aliar com terroristas por conveniência, ou por que eles validam nossos vieses. Ou que se admita o apoio junto com o que está apoiando - não a versão sanitária do que apoia.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Paris e o ódio

Em uma charge, o desdém pelas vítimas de Paris, disfarçado
de "critica a falta de compaixão com a Síria". Paris não foi
"um dedinho machucado" - tal comparação é tão cínica
quanto o vídeo propaganda isralense no ano passado, pintando
as mortes em Gaza como "um peteleco no nariz".
Domingo, com certo atraso, eu escrevi sobre os terríveis eventos que se sucederam em Paris na última sexta-feira. Hoje, o assunto ainda é Paris - inevitável que tal enormidade não seja discutida exaustivamente. Mas o foco deste texto é outro aspecto: o ódio fomentado pelos eventos que sucederam.

Comecemos pelo óbvio: enquanto o fim de semana de fato foi marcado por demonstrações de solidariedade para com as vítimas, e o povo francês demonstrou, em grande parte, uma forte rejeição aos discursos de ódio, estes ganharam força. A islamofobia vive, e tem ganho força no discurso político oficial. Não são poucos os comentários culpando toda a comunidade islâmica pelos eventos, ou pintando-os todos como terroristas.

Da mesma maneira, a xenofobia ganhou força. A França fechou as fronteiras e a mobilidade entre os países europeus se vê ameaçada com a suspensão temporária do tratado de Schengen. A descoberta de um passaporte sírio entre os terroristas serviu de combustível para o argumento odioso de que os refugiados seriam “agentes infiltrados”. Entre os grupos mais conservadores, volta a pauta deportar os refugiados. Em várias cidades, mesquitas foram atacadas.

Entre os que se destacaram por este discurso simplista contra os refugiados no Brasil estavam o pastor Silas Malafaia, que de alguma maneira envolveu o PT na história, e o colunista da Veja Felipe Moura Brasil, que se atreveu a dar uma “explicação definitiva para o terrorismo”. Já nos EUA e na Europa, os mesmos partidos responsáveis por gerar o berço perfeito para o terrorismo quiseram oferecer soluções “finais”: deportar os refugiados, e invadir a Síria. O pré-candidato republicano Donald Trump ainda tentou usar da tragédia para defender o porte de armas.

Mas não é só de velhos ódios conservadores que o discurso de ódio pós Bataclan vive. Disfarçando seu discurso como “indignação pela falta de cobertura de outros atentados”, usuários de redes sociais desmereceram a tragédia. A pauta do fim de semana era “tá, mas e ‘x’”? Alguns dos casos usados como “prova” de que estariam ignorando outras tragédias haviam sido cobertos a exaustão - como o massacre na universidade de Garissa, no Quênia, em Abril, a chacina de Osasco, ou o incêndio na Boate Kiss, no ano passado. E em sua maioria, eram casos datados, pautas frias que não estavam mais no debate mais caloroso da esfera pública,  ou que careciam de uma cobertura mais aprofundada devido a problemas que iam muito além de “falta de interesse”.

Um dos temas mais comuns foi a acusação de “indignação seletiva” por falarem de Paris mas não de Mariana -  a cidade de Minas Gerais devastada pelo rompimento de represas da companhia de mineração Samarco. A indignação é compreensível.  Mas vários dos comentários revoltados acusavam quem se compareceu com Paris de “racismo” e “complexo de colonizado”. Ao mesmo tempo, alegavam que não criticavam pessoas, “mas a mídia”.

A mentalidade ignora, claramente, que o evento parisiense é mais recente, e não sofre (infelizmente para o Rio Doce) dos mesmos entraves à cobertura jornalística que uma tragédia sem precedentes como a que ocorreu em Paris (não inocentado o jornalismo por não superar esses entraves. Mas há um número infinitamente maior de jornalistas em Paris do que em Mariana, ou no Quênia) - e que espalha ondas preocupantes sobre o globo. Da mesma maneira, os eventos não são comparáveis por um motivo simples: embora a ação da Samarco tenha sido sem dúvidas criminosa em sua negligência com a segurança e o ambiente,  não houve uma ruptura deliberada da represa* - diferente de atentados organizados e premeditado visando causar o terror.

Latuff, novamente errando com a melhor das intenções:
O terror não é "retribuição". 
Mas alguns foram além da mera revolta, e entraram de fato no ódio. Comentários como “Digo mais: foi pouco”, “das mortes que os franceses causaram ninguém fala nada” e “eles pediram isso” brotavam e desapareciam das redes sociais. Alguns comentaristas, tentando se passar por peritos, acharam que a pauta era o ataque a revista Charlie Hebdo, em janeiro; outros, trataram de inocentar o Estado Islâmico e jogar a culpa “única e exclusivamente” nos EUA, nas potências ocidentais ou na França. Caso da charge de Carlos Latuff ao lado - que pinta o EI como ‘agente da retribuição”.  

Outros ainda acusaram o governo francês de “demonizando o Estado Islâmico” e alguns chamaram os oito terroristas de “combatentes da liberdade” e “heróis contra o imperialismo”. Tentando se opor a islamofobia crescente, defendem um grupo que mata primariamente muçulmanos, pintam radicais como não sendo responsáveis por seus atos, e fomentam o discurso de que “muçulmano = terrorista”.

Contrariando a lógica simplista que assola os dois lados da política, o terrorismo não é “uma reação dos povos oprimidos ao imperialismo”, e nem ocorre “porque eles nos odeiam por que nos odeiam”. Existem causas longas e complexas, assim como há um fator importante de ódio naturalizado e da ideia de que ações violentas contra alvos não combatentes podem pressionar estados a tomarem as ações que grupos radicais querem. No caso do Estado Islâmico, no entanto, há de se levar em conta que nada difere o grupo da KKK ou da infame Aum Shinrikyo. São extremistas religiosos convictos da retidão de suas ações. A escolha do Bataclan como alvo não foi ‘uma reação ao imperialismo’, mas como afirma o próprio grupo, porque o teatro era "onde centenas de infiéis se reuniam em uma festa de prostituição e devassidão".


Vivemos em uma época bizarra. A violência como solução para conflitos fracassou - é de sua natureza ser incapaz de resolver algo de forma duradoura. Mas na alvorada do século XXI, a violência se naturalizou e passou a ser pintada como “justa”. O discurso justificador - válido em muitos casos, mas de forma alguma neste - de que “a revolta do oprimido não deve ser confundida com a violência do opressor” não pode servir de desculpa para mortes. Não há nada de heróico no que o Estado Islâmico fez. Mas há uma abundância de pessoas que parecem achar que há, ou que devam ser eximidos de culpa.

Este é o “admirável mundo novo” que se estende diante de nós após Paris: um mundo em que o ódio e a violência são vistos como uma forma deturpada de justiça, como se os crimes de gerações e administrações passadas pudessem ser vingados com a morte de civis que “mereceram” e os crimes dos “vingadores” pudessem ser lavados no sangue de outros “da gente dele”.

Irônico que certas pessoas, para se opor a guerra, defendam quem começa outra guerra. E estranho que um dos discursos mais apropriados para os belicosos em todo o globo venha de um programa de TV - ostensivamente, infantil. 

*Isso obviamente não exime a Samarco e a Vale de culpa - mas chamá-las de “terroristas” é banalizar o termo terrorismo, e atribuir malícia ao que é facilmente explicado por ganância e estupidez.

domingo, 15 de novembro de 2015

Paris, o Terror e o Futuro

Cristo Redentor, nas cores da Tricolore. O que vem agora?
A tragédia da última sexta-feira (13/11) deixou marcas profundas. Em uma série de ataques pelos quais o Estado Islâmico assumiu autoria, 128 pessoas perderam suas vidas. 100 delas em apenas um dos ataques: o cerco ao teatro Bataclan, onde a banda Eagles of Death Metal realizava um show. Um banho de sangue sem igual na história recente da capital francesa, incomparável ao caso mais próximo - o ataque a revista Charlie Hebdo no começo do ano.

Mais ao sul e ao leste, em Beirute, outro ataque - também atribuída ao grupo extremista do Iraque e da Síria - Matou 44 pessoas e deixou 239 feridos. Em Bagdá, um atentado suicida em um funeral deixou 18 mortos e 41 feridos. Um dia trágico para Paris, para Beirute, e para Bagdá. E mais do que tudo, um dia trágico para a humanidade.

São cenas de insanidade, sinais de um mundo que perdeu as estribeiras. Jogado ao caos após tentativas frustradas de estabelecer uma nova - ou qualquer - ordem no Oriente Médio. Em todos os casos, foram “retribuição”: contra a França e o Líbano por sua atuação nos bombardeios ao EI, e no Iraque contra o apoio do falecido ao governo local. O Estado Islâmico deixou claro sua intenção de repetir o massacre - e deu a entender que os dias de paz da "Cidade Luz" estavam acabados, assim como estava acabada a paz dentro do seu território.

O presidente da França, François Hollande, chamou a ação em Paris de “declaração de Guerra”, e fechou as fronteiras. O Papa Francisco descreveu os eventos como “o começo da terceira guerra mundial”. Autoridades muçulmanas condenaram veementemente os ataques. Líderes mundiais manifestaram solidariedade com a França. E no horizonte,  o espectro da guerra se reerguia.

Mas uma guerra contra quem? A vaga “guerra ao terror” da década passada se mostrou um fracasso desastroso, que nos gerou o “demônio do século XXI”. Para combater o terrorismo islâmico, as grandes potências geraram um cenário de violência e alienação para um quarto do mundo. Hostilizados pelo ocidente e agredidos em nome do combate ao “terror”, jovens muçulmanos se tornaram presa fácil para o fanatismo. E por extensão do culto apocalíptico e violento que é o Estado Islâmico.

Mas ao mesmo tempo, não é possível alegar, como alguns têm feito, que a França “merecia” ou está “pagando por suas ações”. Menos ainda dizer, ingenuamente, que “é tudo culpa dos Estados Unidos, só deles”. Querendo ou não aceitar essa realidade, o EI é responsável por seus atos, assim como os Estados islâmicos são responsáveis por seus crimes e acertos. E por tanto, devem ser cobrados, criticados e responsabilizados pelo que acontece sob sua tutela.

A França, e com ainda maior intensidade os EUA, foram responsáveis por gestar o monstro que viria a ser o EI ao criar o vácuo de poder que desestabilizou a região,  na guerra do Iraque. E novamente ao armar os rebeldes contra o governo de Bassar al Assad na Síria. Mas é um erro muito grande dizer que ao armar esses rebeldes, muitos dos quais extremistas, estivessem deliberadamente armando o EI. Sim, armaram extremistas e terroristas. É inegável. Mas não tinham ciência ou intenção de que criavam tal monstro.

O momento não é para reações impulsivas, e menos ainda para discursos de ódio contra imigrantes, refugiados - que foram para a Europa fugindo justamente dessa insanidade -  muçulmanos ou árabes. A situação exige mais do que foi feito até agora. E por isso não quero dizer mais força. Há de ser pensada outra maneira de lidar com isso. Já dizia Asimov: a violência é o último refúgio do incompetente. E está na hora do mundo mostrar que tem  competência para lidar com quem é incapaz de conviver com o outro.

Estes horrores não podem servir de base para mais violência. Sim, seus perpetradores devem ser punidos. O grupo responsável deve ser encontrado e detido. Mas responder com mais uma guerra "ao terror" é apenas perpetuar o ciclo de violência e gerar mais uma geração de jovens árabes socialmente alienados, violentados sem nada a perder, facilmente seduzidos pelo discurso extremista. O islã não é o inimigo. Mas a cada novo atentado, perpetua-se a narrativa da "religião do terror" - e com ela, o ciclo de violência que mantém essa estúpida guerra "ao terror".

Quanto às vitimas, destes e de outros atentados e operações de guerra, minhas sinceras condolências. Suas mortes não devem servir para tirar mais vidas: fazer isso seria um desserviço à suas vidas, reduzidas a um combustível tolo para vingança em um mundo onde já há vingança de sobra. Se nos rendermos ao impeto de violência e à barbárie, o que nos separa deles, realmente?

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Quando um protesto tenta calar a imprensa

Melissa Click: a professora de mídia que chamou "músculo"
para calar a mídia. 
Nesta segunda-feira, Tim Wolfe, presidente da Universidade do Missouri renunciou, após uma série de protestos ligados a lentidão da instituição com casos de racismo no Campus. Esse texto não é sobre este evento, mas um que se seguiu a renúncia de Wolfe. Um com implicações graves quanto a noção de liberdade de imprensa.

Acampados no Quadrângulo do Campus, os estudantes ligados ao movimento #ConcernedStudent1950 (assim nomeado a partir do ano em que os primeiros alunos negros entraram na instituição) declararam o local “um espaço seguro sem mídia”. O que se seguiria era uma demonstração de autoritarismo.

Pouco após a renúncia de Wolfe, membros do protesto cercaram o Quadrângulo aos gritos de “hey hey, ho ho, Reporters have to go”. No Twitter, a conta do movimento destratava a imprensa alegando que “essa história não é sobre você”, e não é: mas ela deve ser coberta. E ao final do dia, o movimento começava outra batalha, contra o jornalismo e o corpo estudantil do curso de jornalismo da Mizzou.


Tim Tai, um veterano de jornalismo a serviço da ESPN.com tentou cobrir as celebrações da renúncia in loco, antes de ser assediado e intimidado por manifestantes alegando que ele “não tem o direito de tirar fotos”. Rejeitando a narrativa do movimento e informando dos seus direitos constitucionais, Tai foi então intimidado por uma administradora da universidade, ligada às fraternidades e sororidades na Mizzou, que alegou que Tai estava “violando os direitos civis dos manifestantes”. A adminstradora, posteriormente identificada como Janna Bazzler, se recusou a se identificar para o estudante, alegando que “seu nome era 1950”.
O confronto foi gravado por outro aluno da instituição, o veterano de história e fotógrafo do jornal da Universidade, o The Maneater, Mark Schierbecker. Schierbecker foi também alvo da ira dos manifestantes, sendo ameaçado pela professora de estudos culturais e mass media Melissa Click - que ante a recusa de Schierbecker em se retirar do espaço público, pediu a ajuda de “músculo” para forçar o repórter a sair. O reitor da escola de jornalismo da universidade de Missouri, Davius Kurpius, condenou a professora e retirou seu título de cortesia dentro da instituição. Kurpius foi só um dos muitos professores de jornalismo nos EUA a condenar Click abertamente.


"Sem mídia - Espaço Seguro":
Descaso com a liberdade de imprensa em
um espaço público.
A justificativa oficial do movimento para esse comportamento era “evitar narrativas desonestas”. Como pretendiam fazer isso é desconhecido. O que se sabe é que, após dois incidentes de agressão verbal e ameaças contra jornalistas do campus, o protesto conseguiu cobertura da imprensa - uma cobertura nada positiva, e que ressalta o comportamento autoritário e censurador adotado por dois adultos envolvidos no incidente.

Tai e Schierbecker fizeram o seu trabalho de forma admirável. O comportamento adotado pelos dois funcionários da instituição não difere em nada de outras tentativas de intimidar jornalistas por parte de políticos (como a expulsão de um jornalista da Univision pelo pré candidato republicano Donald Trump em uma coletiva), empresários e autoridades. E só difere das tentativas de censura de governo ditatoriais pela falta (até o momento) de violência física.

A resposta do movimento e das duas funcionárias - Click e Bazzler - à repercussão foi igualmente negativa.  Enquanto o 1950 tratou de alegar que não impede o trabalho de imprensa contanto que feito por eles mesmos em vídeos postados pelos manifestantes, acesso de profissionais continua barrado a força, as duas duas funcionárias trataram de apagar seus perfis online e recusar respostas e pedidos de entrevistas. O Sistema Grego, das Sororidades e Fraternidades, por sua vez, declarou seu apoio a Bazzler, que considerou ter sido “mal compreendida”.

É compreensível que haja uma falta de confiança na mídia por parte de um movimento ligado a minorias - por sinal, completamente justificado. No entanto, isso não é nem motivo e nem justificativa para expulsar repórteres de um espaço público, alegar que a ela não tem o “direito” de cobrir o ato porque “ a história não é sobre ela” (um argumento que essencialmente anula todo o trabalho da imprensa - afinal, jornalismo não é sobre jornalistas, ou ao menos não deve ser), ou “chamar o músculo” quando esta se recusa a sair. 


A atitude do movimento 1950 gera um precedente perigoso quanto a liberdade de imprensa: a noção de que movimentos sociais tem o direito de expulsar e ameaçar jornalistas no seu meio “por não se sentirem confortáveis”. Isso já tem sido visto em alguns protestos e manifestações aqui no Brasil: em junho de 2013, Caco Barcellos foi expulso aos berros de uma mobilização contra aumentos da tarifa de ônibus em São Paulo. Em novembro passado, um profissional do CQC foi agredido e expulso em uma manifestação contra o governo de Dilma Roussef. Este ano, o Movimento Brasil Livre (MBL) ameaçou e hostilizou jornalistas em uma manifestação no dia 15 de março. Já em novembro, manifestantes pró-Bolsonaro  agrediram verbalmente a equipe do Diário de Pernambuco no Aeroporto de Guararapés, pedindo o retorno da censura.

Independente de qual seu posicionamento político, não é aceitável o uso de “músculo” e intimidação para impedir o trabalho jornalístico, especialmente dentro de espaços públicos. A alegação de que o grupo “se apoderou” ou “tornou aquele um espaço seguro” é irrelevante. A liberdade de imprensa é um dos pilares da democracia e é absurdo que movimentos que se dizem democráticos - em ambos os lados da política - se vejam no direito de impedir o trabalho da mesma. Isto é uma atitude típica de ditadores, visando que apenas o seu lado seja ouvido, sem contraponto e sem questionamento.


*o caso recebe uma dose extra de ironia quando dois dias antes de seu acesso de autoritarismo, Melissa Click havia convidado a imprensa a vir cobrir o protesto.