quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Vamos falar de prisões?

Crédito: Gleice Lisboa. Humilhação.
Frente a situação calamitosa do Maranhão, a discussão sobre o sistema carcerário brasileiro se mostra mais uma vez necessária - não que em algum ponto tenha deixado de o ser. Soluções fáceis tem sido lançadas a esmo; em sua maioria, resumem se a aumentar a violência contra o preso, efetuar mais prisões, retirar direitos (referindo aos mesmos como privilégios) e estender penas - ou seja: ser "duro com o crime", um lugar comum que não aborda os pontos vulneráveis do sistema, e se baseia em uma série de premissas falhas.

População Carcerária. 

A discussão a respeito da criminalidade frenquentemente envolve a alegação de que não se fazem prisões o bastante no país - que "se tem leis demais para proteger bandido", que deve se reduzir a maioridade penal, e ocasionalmente, que o direito a um julgamento justo é "fazer carinho em bandido". Mas será que as estatísticas apontam para uma carência de prisões efetuadas? Vamos para os dados, como emitidos pelo InfoPen e o Conselho Nacional de Justiça. 

O dado mais recente do InfoPen, referente a dezembro de 2012, indica uma população carcerária de 548 mil presos - o Depen (Departamento Penitenciário Nacional) aponta 563,7 mil; destes, 195 mil estão em situação provisória - leia: ainda não foram condenados, e portanto não poderiam estar presos. Outros 22 mil, segundo o CNJ, já cumpriram suas penas e deveriam estar em liberdade. O mutirão carcerário 2011 do CNJ indica mais problemas demográficos, entre lotações e penas excessivas, sofrimento desnecessário causado pela superpopulação e condições precárias, trabalhos forçados sem determinação penal.

Segundo dados oficiais, apurados por Thiago Reis e Clara Velasco para o portal G1, tem-se um deficit carcerário de 200,2 mil vagas; o sistema tem capacidade para apenas 363,5 mil presos. Além disso, enquanto se tem a queixa comum de que não se prende o bastante, o Brasil teve uma explosão carcerária nos últimos 20 anos, passando de 126 mil para quase 564 mil presos entre 1993 e 2013.

Sob a égide do "direito humano" de levar porrada..
Onde isso nos coloca globalmente? O Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo, ficando atrás apenas da China (1,6 milhão de presos), da Rússia (780 mil presos) e dos EUA (2 milhões de presos)- e isso não é um bom indicador. Leve se em consideração que dois dos casos são países extremamente autoritários, um deles com a maior população do globo, e o terceiro mantém em muitos estados um regime de prisão perpétua para criminosos reincidentes, juntamente com uma privatização carcerária que deu força a um lobby para ampliar penas de privação da liberdade e reduzir a aplicação de penas alternativas. 

Detenção, violência e socialização


Presos são torturados em Santa Catarina
Como dito acima, e apontado pelo mutirão carcerário do CNJ, o tratamento dado aos presos no Brasil envolve uma série de violências sistêmicas, que tornam a ressocialização do detento muitas vezes impossível. O descaso do estado para o preso abriu as portas para que as prisões virassem domínio de organizações criminosas; com frequência, os "novatos" são obrigados a se juntar a uma das facções criminosas formadas dentro da unidade de detenção para obter um mínimo de segurança, não oferecida pelo estado.

O tratamento é frequentemente desigual; No Grajau, "presos colaboradores" assumiram as funções administrativas da carceragem, enquanto na Pavuna (ambos no Rio de Janeiro), a "segurança interna", para economizar em agentes carcerários, ficou sob "responsabilidade" dos detentos. Em ambos os casos, assim como em vários outros de acordos "extra oficiais" dos agentes com os presos, os "colaboradores" recebiam regalias que incluíam quartos com ar-condicionado, refrigeradores e televisões, enquanto o restante dos detentos se amontoava em celas super lotadas e imundas.

Criança dividindo espaço com detenta. Autor desconhecido.
Condições de higiene insalubres são norma, não exceção, assim com a carência de material de saúde - em alguns casos, o mutirão encontrou coisas como detentas sendo obrigadas a usar pedaços de pão como absorvente íntimo, enfermarias com remédios vencidos a mais de cinco meses, presos dividindo espaço com ratos e baratas. Celas para quatro presos frequentemente abrigam 15, detidos como animais em celas sem ventilação, submetidos a calor excessivo, dormindo amontados no chão - não raro imundo. Em presídios femininos, ainda é comum que essas celas atrozes, inadequadas até para a sobrevivência de adultos, sirvam de abrigo para crianças.

Para não mencionar quando a violência não se resume ao sistêmico - os casos frequentes de violência contra os detentos, que incluem espancamentos, torturas e até execuções por parte de agentes carcerários e facções criminosas para "dar um exemplo" ao restante dos presos; abusos sexuais e estupros contra detentas, frequentemente grupais; assédio e tentativas de intimidação contra parceiras do detento em visitas íntimas; privação de tratamento médico, presas algemadas no pós parto e regimes de isolamento prolongados sem justa causa (problemas que não se restringem ao Brasil, admita-se).

Costas marcadas pela tortura, realizada por outros presos.
Agência Mais
Tudo isto com o aval da população, que clama por um tratamento mais grotesco - como se o problema da reincidência (que no caso de menores infratores é de 70%, um dos maiores do mundo - entre os presos adultos, é de "meros" 50%) se devesse ao presos não serem desumanizados o bastante - e não ao quão brutalizado ele foi na prisão, e quão excluído é ao sair dela. E isso advém de como o preso e o "bandido" são representados no imaginário popular.

Representação do Preso

Um argumento comum para justificar a violência contra o detento é bem simples: ele merece por causa das pessoas que ele matou/sequestrou/estuprou/assaltou. E ele é bem emblemático de como vemos a questão criminal. Tem se a ideia fixa de que todo preso é um criminoso violento, perigoso, irredimível, e que portanto merece ser alvo da mais abjeta violência. Mas segundo o CNJ, 65% dos presos brasileiros não cometeram crimes violentos - e como mencionado anteriormente, quase 200 mil ainda nem foram julgados.

Não se olha o fator social do crime - se reduz o problema da criminalidade de um fator social complexo para uma mera questão de "caráter ruim". Não são as políticas sociais, a falta de oportunidades, o vício, a discriminação ou o estado paralelo que se formou em comunidades carentes que leva jovens em situações vulneráveis ao crime: é "sangue ruim"; "falta de caráter"; "o jeitinho". Vê se na violência uma solução pois não se considera que o problema seja social. Quando questiona-se o porque de países com programas sociais e de inclusão decentes terem taxas de crimes tão mais baixas, se responde com "mas a cultura é diferente" (quando não se apela para "não se tem essa gente ruim").

para não citar as prisões injustas, como a de Mario Cirlei Brito,
vitima de um erro de identificação.
Mas vamos aos dados nisso, segundo o CNJ; 95% dos presos são pobres ou muito pobres, em sua grande maioria oriundos de favelas e ocupações - onde o estado se faz ausente exceto pela repressão. 65% não tem o ensino fundamental completo - o que severamente limita a inserção no mercado de trabalho e a possibilidade de sustento.  66% são negros e pardos em um país racista, onde a PM já mais de uma vez recebeu ordens explícitas para abordar "negros e pardos", onde o tom de pele e estrato social são argumentos para ser prejulgado criminoso, e novamente limitam pesadamente a inserção social.

E aí vem a questão do ex-presidiário; como pode o indivíduo que já tem todos esses estigmas e que raramente é capacitado ou educado dentro da prisão - embora seja um direito constitucional e um dos pilares do processo de ressocialização, apenas 8,6% dos presos estão inclusos em programas educacionais, e somente um quinto dos presos está trabalhando. Fora da prisão, a marca de "ex-presidiário" é garantia de desemprego (visto que muitos acham correto não contratar ex-presidiários, porque "vai que me mata"), da impossibilidade de se alugar uma casa, e até de contratar certos serviços. Sem oportunidades, não lhes resta muito senão o crime.

Cenas como essa ainda são raras - e a ideia que se tem de "por
preso para trabalhar" ainda é a de trabalhos forçados e sujeita-los
a violência. Quando não envolve sugerir que se usem presos como
cobaias.
Há exatos 150 anos, o escritor francês Victor Hugo abordou o tema em Os Miseráveis - preso por um crime minúsculo - quebrar uma janela e roubar um pedaço de pão para alimentar a sobrinha faminta - Jean Valjean passa 19 árduos anos preso, humilhado e submetido a trabalhos forçados; fora da prisão, marcado como um "criminoso perigoso", é hostilizado e excluído por todos a sua volta. Entrou na prisão um homem bom - ignorante e que nunca fora amado, mas bom - e assustado. E emergiu de lá embrutecido e cheio de ódio. Valjean teve sua recuperação através de outro crime: a falsidade ideológica, pois apenas "matando" Jean Valjean que teria direito a uma vida nova - os Valjeans brasileiros, não tem essa chance.

E agora?

Fonte: Latuff
A tendência, lamentavelmente, é que esses problemas tendam apenas a aumentar; a revolta dos presos e a presença de facções criminosas surgidas como resultado desse sistema podre é vista como um sinal de que mais violência é necessária. O embrutecimento do discurso político vêm tornado "justificável" prisões "preventivas" - como as vistas em rolezinhos e protestos, onde o cidadão é detido "pois poderia cometer um crime", violando o principio constitucional de que somos inocentes até que se prove o contrário - E com a aproximação da Copa do Mundo e a obsessão em manter uma "boa imagem", a tendência é que as prisões irregulares sejam mais comuns. Junto com a higiene social de se prender mendigos, pedintes, meninos de rua e usuários de drogas sem tipificação de crime, para "eliminar o mal pela raiz".

Mas há outro problema por vir: recentemente, a Deputada Federal Antônia Lucia (PSC-AC) apresentou uma PEC que eliminaria um benefício direcionado aos familiares de presos que tenham contribuído com o INSS. Alegando que o auxílio reclusão, criado em 88 para garantir a subsistência de filhos de detentos (e não "criado pela Dilma para dar dinheiro pra vagabundo", como se espalhou pela internet), é "um estimulo a bandidagem", a deputada propõe deixar ao relento a família do preso - explicitamente como uma punição adicional, novamente em violação da constituição, punindo inocentes pelo crime do pai/mãe - para dar auxílio à vítima do crime, que já pode exigir indenizações do réu e do estado. O resultado disso, na melhor das hipóteses é virar os prejudicados - crianças - para a miséria e o crime. No pior, mata-los de fome.

"Tá com pena, leva pra casa".  

Considerações sobre o clichê.

A lógica de desumanização do outro, e a hostilidade do "debate"
em evidência.
Só para responder a alguns "argumentos" comuns em prol dos maus tratos aos detentos - primeiro, o clichê do "tá com pena, leva pra casa": não se trata de ter pena - trata-se do que estamos fazendo como sociedade, nos rebaixando a tortura e a degradação do ser humano em nome de uma "justiça" que não tem nada de justiça, e muito da mais baixa vingança. Argumentem o quanto quiserem que o cidadão X é um assassino - mas isso não justifica sequer torturar "X", quanto menos "Y", que foi preso por roubar uma garrafa de cerveja, "Z", que foi preso por desacatar o policial, e "A", preso por que parecia suspeito e ninguém se ergueu para defende-lo. 

Outro é o "só defende bandido quem é bandido" e o seu parente, "direitos humanos para humanos direitos".; Não sou uma mulher, mas defendo as feministas. Não sou gay, mas sou a favor do movimento LGBT. Não sou uma árvore, mas defendo o ambiente. Não fumo e nem quero fumar maconha, mas sou a favor da legalização. Não sou um "bandido"; o que eu defendo são seres humanos, reduzidos a um descritor negativo por causa de um ato, que não define o todo que eles são. Por trás de cada preso há uma história de vida; têm pessoas horríveis, tem pessoas que escolheram mal, tem pessoas inocentes e tem pessoas que não podem responder pelos seus atos, por razão de doença mental. Não são esse monstro caricato que é "o bandido" - e qualquer um pode se encontrar nessa situação, por erro, por desvio, por falha da justiça. São ainda pessoas, e devem ser tratadas  como tal. E sinceramente, acho que o humano menos direito é o "cidadão de bem" que tem uma tara por violência do porte do "bandido bom é bandido morto". 

Sugestão grotesca: usar presos como cobaias. Independente do Crime. 
O último é "quero ver dizer isso quando um desses animais tiver com uma arma na sua cara". Beeem... eu já fui assaltado cinco vezes; já fui espancado saindo de uma festa; já fui expulso de um ônibus por adolescentes xenófobos, e já fui ameaçado por "cidadãos de bem" por defender que jovens de comunidades carentes não fossem tratados como bandidos "preventivamente"; que conservadores e capitalistas fizessem suas próprias manifestações, ao invés de se apoderar das promovidas pela esquerda; por dizer que todos merecem um julgamento justo, entre outras - e mesmo assim, não acho que morte e tortura seja a solução. Como diria Salvor Harding, a violência é o último refúgio do incompetente - e é isso que o nosso sistema prisional é: incompetente, mantido por incompetentes e elogiado por uma população que cultua a incompetência.  E isso tem que mudar - antes que a sociedade inteira seja pior do que o pior bandido. 

Um único inocente punido invalida o sistema - ainda mais quando essa pena é tortura, ou morte. 

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

"É só uma música"....

Vejam o vídeo ao lado, e me digam o que chama atenção. Não sei quanto aos leitores, mas algo que me cheira intensamente errado em direcionar à crianças a mensagem "quem pecar vai pagar, quem pecar vai morrer"; cheira me a terrorismo psicológico, e tom alegre dessa "música" (termo que uso com muita generosidade) só torna o efeito mais perturbador.

Sei que vai ter quem diga que é uma "expressão de fé"; que é um dogma da fé cristã, e que é liberdade religiosa, etc; Mas eu pergunto, fariam a mesma forma de defesa se fosse de um grupo islâmico, ou gritariam "terrorismo"? Fosse um grupo de umbanda dizendo similar, haveria defesa, ou haveria uma horda religiosa clamando que era "macumba" corrompendo as crianças (de maneira similar a que fazem com, bem, mídia em geral)? Ou se fosse uma música assim por parte de um movimento político - digamos, "Capitalista vai pagar, Capitalista vai morrer" - haveria como defender isso? Se fosse sobre um grupo étnico? "Judeu vai pagar, judeu vai morrer?", ou se fosse invertida, "Cristão vai pagar, Cristão vai morrer?" - é mais fácil perceber o ódio assim, não?

Não me é relevante no que as pessoas acreditam - não deveria ser relevante para ninguém as crenças de outrem; o que é relevante é como essas crenças são expressas. E neste caso, temos alguns problemas claros. Primeiro, o misto de estigmatização do outro e exaltação do "grupo": "eles", pecadores, condenados e "Nós", filhos de deus. O segundo é o discurso de violência simbólica daí derivado: "eles" tem que pagar e merecem morrer; sua vida não é de digna, não são merecedores do amor. Doutrinado em uma lógica destas, não é de se admirar que alguns (e não poucos) achem justo politicas para restringir o direito do "pecador", quando não o uso da violência contra o mesmo.

Essa manipulação emocional é incrivelmente comum; foi usada contra negros, contra imigrantes e contra minorias em geral ao longo da história. E novamente - o argumento de fé, de que é "simbólico" não se aplica; a sua compreensão pela fé não precisa e nem deve ser seguida por quem não compactua com ela, ainda mais depois de lideranças religiosas emitindo discursos contra os "pecadores" como culpar gays pelo atentado em Boston; Dizer que veriam o sepultamento do último pai de santo; sugerir, quanto a Síria, que se matassem todos eles e deixassem "Deus separar"; quando se vê uma professora humilhar publicamente um estudante por ser budista; quando se tem um quadro destes, a defesa padrão de "odiamos o pecado, não o pecador". 




Agora olhem o segundo clipe - esse é um caso mais... chocante. O que se tem aqui é uma apologia explícita do estupro, visto como uma exaltação da virilidade e da masculinidade. Quando disponível, o vídeo-clipe da música conseguia deixar a situação ainda pior, começando pela introdução do clipe, retratando um cenário "clássico" de estupro (e o único em que algumas pessoas acreditam que seja estupro - o do agressor em uma área escura e isolada), seguida por uma letra centrada em um agressor orgulhoso e uma mulher amedrontada.

Enquanto isso, a culpa, sempre, é da vítima.
Em uma só tacada, a banda Abrakadabra consegue insultar e desvalorizar vítimas de estupro, enquanto enaltece o agressor e pinta uma agressão tão grosseira como um ato "de paixão e prazer" ("Aí, que sonho bom"), e insinua que no fundo mulheres querem ser estupradas. Em defesa, o máximo que a banda fez foi postar uma única imagem condenando a violência contra a mulher. Nenhuma nota de retratação; nenhum pedido de desculpas. Uma foto, e supostamente, isso basta para dizer "não apoiamos estupro, embora tenhamos feito uma musica glorificando isso".

Apologia ao estupro: também em propagandas, esta do ano passado.
Antes que digam "é só uma música", vamos lembrar que o discurso ao qual alguém é exposto tem sim influência em sua mentalidade; no caso, temos uma banalização e exaltação do estupro dentre uma sociedade que já trata a vítima como culpada dessa agressão, e frequentemente trata o agressor como inocente - e não, quando falo de "uma cultura", não estou falando da subcultura do funk (até porque Rock, Jazz e até a "tão culta" Opera tem letras mais explicitas nesse sentido - algumas sensíveis, outras mais ofensivas...); estou falando da "cultura ocidental" como um todo - como demonstrado em caso após caso após caso de estupro onde a vítima é humilhada, insultada e até agredida como resultado de ter feito uma denúncia. Nesse quadro, uma música enaltecendo o ato vai além de ser ofensiva: é irresponsável. [1] Não digo que ela sozinha vá ser culpada por estupros, mas como parte de um quadro social, tem um que de culpa para cada estuprador dentre seus ouvintes, e mais ainda para cada um que diz que "no fundo ela queria"; Ignorando-se isso, ainda assim é culpada pela brutal insensibilidade, e a estupida negligência com que aborda um tópico tão sensível. 

O que realmente me surpreende, no entanto, é que enquanto "piadas" e músicas claramente ofensivas são tratadas como incriticáveis - nota: não estou pedindo censura aqui, mas realmente acho que são no melhor cenário, irresponsáveis e mal pensadas; no pior, discursos deliberados de ódio - a representação de personagens LGBT é vilipendiada como "propaganda Gay" (e enfrenta tentativas de censura); a cobertura de protestos, rolezinhos e revoltas é condenada "pra não dar ideia"; auto proclamados defensores da "livre expressão" querem proibir "doutrinação comunista", usando de intimidação para isto; em redes sociais, abunda a ideia de "prender quem ouve Funk", e piadas inocentes com Jesus como protagonista (e que nada dizem a respeito dele, ou da fé cristã) são alvo de um processo buscando censura (numa versão por ora menos violenta do escândalo das caricaturas de Maomé). É isso que me surpreende: a imensa tolerância que se tem com o absurdo - mas a tolerância nula com "o que eu discordo". 

[1] Um comentário: muitas das pessoas que vi "defenderem" como só uma música (ao mesmo tempo usando insultos raciais para descrever o tipo de gente que a ouve) se opunham a presença de personagens LGBTs por fazer "apologia a homossexualidade". 


segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Reducionismo, reducionismo trivial...

Incendiado ao ficar preso em uma barricada, ou ateado fogo
via coquetel molotov por "baderneiros"? Ou nem uma coisa
e nem outra, mas algo mais complexo?
fonte: G1
Rápido: o que os protestos contra a Copa do Mundo, os Blac Blocks, as ações do MPL, os atentados no Egito, os movimentos feministas, os rolezinhos e as manifestações contra o governo ucraniano tem em comum? Não, não são as causas - cada uma tem motivações diferentes (embora semi-relacionadas por terem muito a ver com representatividade); Também não são os métodos, a não ser que você esteja sugerindo que o MPL faz atentados a bomba, e que o Ansar Beit al-Maqdis estava gritando palavras de ordem e jogando ovos nos prédios da polícia egípcia. 

Não, a resposta é algo mais simples: a maneira como em todos estes casos, o conflito e seus atores são reduzidos no discurso popular a uma versão simplista - e que muitas vezes não tem nada a ver com o factual. E assim qualquer possibilidade de debate se perde, em meio a uma compreensão que mal pode ser reconhecida como tal. Em poucas palavras, movimentos e fenômenos complexos são reduzidos a clichês e frases e efeito... Da mesma maneira, os membros destes grupos são reduzidos ao grupo - e o grupo é reduzido às ações de seus piores. 

Um atentado movido ao ódio pelo ódio, oposição a um governo
ilegítimo, uma combinação das duas coisas, ou nada disso?
fonte: BBC
Rapidamente, o Passe Livre passa de um grupo com uma pauta bem definida para "comunistas que não sabem o que querem", quando não mentirosamente reduzidos a "playboys egoístas que ameaçam a polícia"; as contradições entre a modernidade e a tradição no Egito são ignoradas, e ao invés de se olhar para os conflitos resultantes e o que está por trás deles, se reduz a "terroristas que odeiam porque odeiam"; Os jovens protestando contra a copa são reduzidos a "baderneiros" (ou a "heróis em prol da saúde e da educação", apesar do investimento de R$ 28 bilhões ao longo dos últimos cinco anos - ou R$5.6 bi/ano - não ser nada perto do orçamento de educação -R$ 88.7 bilhões - e saúde - R$ 93 bilhões - para 2013 apenas. Além disso, os ditos R$ 28 bilhões são uma combinação de fundos privados e federais, e destes R$ 17 são em infraestrutura e aeroportos. Mas eu digredi, e não discordo que o gasto seja absurdo); e os manifestantes da Ucrânia são só "vândalos" (ou novamente, heróis contra a "ditadura comunista", por pessoas que ainda não saíram da guerra fria), ignorando o histórico de corrupção do governo Ucraniano e o radicalismo conservador de grupos de oposição.  

MPL: baderneiros comunistas, vândalos que ameaçam a polícia
entre outros insultos usados por quem se recusa a ouvi-los.
Para não mencionar o quão intenso é este fenômeno com relação aos Blac Blocks - como as ideias políticas que guiam esses jovens anarquistas e predispostos a violência contra os símbolos das instituições que vêem como inimigo se perdem em meio a cacofonia de acusações mútuas por parte da esquerda e da direita, ambos acusando a outra de ser responsável pelos "vândalos", e ambas negando responsabilidade; Ou a ainda pior relação com as feministas e os "rolezeiros", onde o reducionismo e a trivialização passa de insultos "leves" (como reduzir a posição do MPL à "esquerdopatia", esse termo tão vejistíco) para uma enxurrada de insultos misóginos, ameaças de violência sexual e assassinato de caráter (a mais clássica: "A cura pra feminismo é uma boa trepada" e outras aberrações), ou à ofensas racistas e acusações de criminalidade, por parte de quem nega que haja um caráter racial na questão.

É fácil reprimir e invalidar movimentos sociais, assim como é fácil manter o status quo frente a uma ameaça quando se reduz toda e qualquer oposição à um espantalho, causado por "gente ruim", ou por "baderneiros". Quando se reduz o terrorismo ao ódio pelo ódio, é fácil justificar o uso de violência contra "eles" - quando se demoniza a oposição - mesmo uma que já escalou o conflito para o uso da violência - com um reducionismo tão tacanho (e no caso do Egito, tão mentiroso, ao associar a Irmandade Muçulmana com um grupo repudiado pela mesma) é fácil justificar a violência contra o "outro". Não me surpreende, por exemplo, que a maneira como os Blac Blocks são tratados como essa coisa monolítica e perversa seja usada de justificativa para prisões e agressões contra manifestantes em geral. Ou se o atentado do al-Maqdis seja usado pelos militares egípcios como desculpa para perseguir muçulmanos ortodoxos. 

Vale lembrar que esse reducionismo foi usado com maestria por governos autoritários e por movimentos extremistas ao longo da história; Trayvon Martin foi reduzido a um "Thug" por racistas na Florida; Hitler reduziu Judeus a uma caricatura grotesca, responsável por todos os males da Alemanha; Joseph McCarthy promoveu uma "caça as bruxas" no governo americano, atrás de um espantalho comunista; Stalin e Mao justificaram a perseguição aos "capitalistas" com distorções e simplificações. Agora, no Brasil, vemos certos formadores de opinião clamando pela violência contra movimentos sociais, enquanto acusam - sem base - esses movimentos de buscarem um "golpe comunista". Vêm a questão... para que fim esse discurso?.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

No Egito, atentados e morte às vésperas da Primavera Árabe.

Véspera do aniversário dos protestos que deram início a primavera Árabe, esta manhã foi marcada pela violência na capital egípcia. Ao menos três explosões cruzaram a cidade, deixando, até o momento, cinco mortos e cerca de 100 feridos. Os atentados são mais uma marca de violência na república Islâmica, marcada por conflitos políticos e religiosos desde 2011. Protestos e manifestações marcados por conflitos com as forças armadas levaram, então, a queda do ditador Hosni Mubarak. 

Agora, o conflito é entre forças islâmicas e o governo interino, colocado pelos militares após o golpe de estado que derrubou o presidente eleito Mohammed Morsi - alinhado com a Irmandade Muçulmana - e colocou a segurança pública em mãos militares, em julho do ano passado. O primeiro dos atentados atingiu a sede da polícia, no centro do Cairo por volta das 6h30, matando 4 e ferindo 76. Algumas horas depois, outras duas explosões atingiram delegacias, deixando mais um morto e quinze feridos. A explosão do primeiro atentado também danificou i museu da arte Islâmica, um prédio do século XIX. 

Um grupo inspirado pela Al Qaeda, o Ansar Beit al-Maqdis assumiu autoria dos ataques - o mesmo que em dezembro atacou um prédio da segurança pública em Mansour em dezembro, deixando 16 mortos e 100 feridos; apesar disso, o governo militar culpou a Irmandade Muçulmana, e novamente classificou o grupo Islâmico como sendo terrorista - antes, eles já haviam sido proibídos de se manifestar e de participar das novas eleições, que ocorrerão esse ano. De sua parte, a Irmandade condenou o "ataque covarde" do Ansar Beit al-Maqdis, e negou qualquer envolvimento.  

A retórica do governo militar não aponta para um futuro positivo para o Egito, mas parece ter sido bem sucedida em gerar um "outro" contra o qual unir a população. Apesar da condenação pública contra o ataque, a Irmandade Muçulmana foi hostilizada, e manifestantes contra a entidade se reuniram no local dos ataques. Entre as palavras de ordem, estavam gritos de "assassinos" e "morte a irmandade muçulmana". Um "debate" composto por espantalhos e simplificações das posições alheias, que não tem como ser construtivo - não quando os lados visam apenas destruir um ao outro. 

A tendência é que o "debate" - se é que assim pode ser chamado - se torne cada vez mais radicalizado. Como demonstrado por outras nações islâmicas, em especial o Irã, a sensação de "não representatividade" acaba levando a rejeição do Estado, visto como ilegítimo: enquanto o Egito segue em emulação do ocidente (como definido por Ibrahim Afsah, da universidade de Conpenhagem), grupos islâmicos já radicalizados se sentem cada vez menos representados - e com isso tendem a rejeitar a modernidade em nome da tradição e do fundamentalismo.

Combine isso com o fator duplo de um governo hostil ao tradicionalismo e o discurso inflamado de líderes fanáticos ligados a grupos radicais, e se tem um ciclo vicioso de violência: a cada novo atentado, se tem uma desculpa para pressionar mais os tradicionalistas; a cada nova tentativa de repressão, o radicalismo se acirra e se tem uma justificativa para atacar "os opressores" e "corruptores". Um ciclo que tende apenas a se agravar até o ponto que um dos lados consiga esmagar o outro - e vendo pelo histórico dessa ressurgência fundamentalista, o provável é que, ao invés de um governo islâmico moderado como o do derrubado Mohammed Morsi, se tenha uma república fundamentalista tal qual Irã - ou pior, um "estado" tal qual o Afeganistão, embora vendo o histórico institucional do Egito seja improvável um desmantelamento a tal ponto. 
para relembrar a queda de Morsi.

Por ora, resta ao mundo observar, e manter em mente a violência causada, mais uma vez, por um fanatismo e uma retórica de ódio dos dois lados, sustentada em um governo ilegítimo e mantido por interesses estrangeiros. É fácil reduzir a questão do terrorismo islâmico a "eles nos odeiam por que nos odeiam", como infamemente disse Joe Scarborough - mas fazê-lo não poderia estar mais errado. A questão deveria ser "o que tem sido feito para levar a esse fanatismo" - e "o que podemos fazer para desestimulá-lo", ao invés de "como calar essas pessoas que nos odeiam".

Como disse bem Isaac Asimov, através de seu personagem Salvor Hardin... "Violência é o último refúgio do incompetente". Esperemos que o governo militar se torne digno de governar, e demonstre competência ao lidar com a situação - do contrário, teremos um duelo de incompetência dentre militares e islamitas.

Vale lembrar que embora tenha sido eleito democraticamente, o governo de Morsi era marcado por corrupção e abusos de poder - é lamentável que tenha sido retirado por um governo ilegítimo e que nada vez para diminuir os problemas do governo anterior - só mudou os favorecidos; De Mubarak a Morsi ao interino Adlim Mansour, o Egito parece preso em ciclo de abuso de poder, autoritarismo e incompetência. 

Resta esperar para ver o que serão das manifestações e celebrações da primavera árabe amanhã. 

fotos retiradas do site da BBC. Crédito: Mohammad Assad. 

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Mais conflito entre polícia e MPL em Joinville

As coisas seguem de mal a pior em Joinville: após uma manifestação empolgada do MPL nesta quarta-feira, mais uma vez viu-se o aparato policial atropelar os limites da legalidade, com a prisão de três dos manifestantes, efetuada após o término da manifestação, sem mandato judicial, flagrante ou justificativa. Uma prática lamentavelmente cada dia mais comum para reprimir o direito a expressão e a manifestação de movimentos sociais. 

O MPL atirou ovos contra a Prefeitura e a sede da PasseBus (a empresa de cobrança de ônibus), fez uma pequena pira em frente a PasseBus, e saltaram a catraca do terminal de ônibus. Apesar da repressão, o tom foi positivo: não poucos alardeavam uma manifestação ainda maior por vir. 

A manifestação já foi conturbada antes, segundo me relatou uma participante: Policiais Militares faziam ameaças verbais e visuais contra os membros do Movimento Passe Livre, empunhando os cassetetes. Ao mesmo tempo marcavam possíveis lideranças. Em outro momento, um PM começou a proferir obscenidades para outro policial. Segundo outra manifestante, ameaças veladas foram feitas contra participantes. 

Hostilidade também emergiu da população: em um momento, um motorista acelerou e tentou atropelar os manifestantes.  Um grupo de "playboys" tentou desmerecer o movimento, dizendo que os jovens deveriam "estudar e trabalhar", ao invés de "fazer manifestação por passe livre". Ao mesmo tempo que se via essa hostilidade, o grosso da população pareceu dar apoio ao ato: quando os membros do MPL passaram a pular as catracas, grande parte dos transeuntes pulou junto, segundo o MPL. 

Essa hostilidade aos manifestantes acaba sendo um sintoma de um problema maior: a rejeição aos movimentos sociais, no caso o MPL, causada em parte por um discurso da imprensa de que os manifestantes não sabem o que querem, e que seria coisa de gente "com tempo livre demais". A mesma hostilidade se nota contra outros movimentos sociais, como com o MST, a Marcha da Maconha (que é explicitamente chamada de coisa de "vagabundo") e com as feministas, que tem o adicional de além de serem chamadas de desocupadas, tem uma dose extra de insultos machistas. 

O relato, segundo o Movimento Passe Livre
de Joinville.
Mas como já disse, o pior ocorreu  depois do termino da manifestação: três lideranças do movimento foram detidas, sem mandato judicial, na Avenida Getúlio Vargas; segundo relatos no Facebook, a PM parou o ônibus em que três manifestantes estavam, e os levou ao 5º DP, depois de agredir um deles. Não tive informações do motivo da prisão, ou se o trio já foi solto até o fechamento deste texto. 

No entanto, tenho que notar o aumento gradual da repressão, em especial com a aproximação das eleições e da Copa do Mundo; é de conhecimento público as tentativas de setores dentro do legislativo de enquadrar os movimentos sociais como sendo "terrorismo", ou formação de quadrilha, e assim facilitar a prisão de lideranças civis e estudantis. Da mesma maneira, prisões sem justificativa e flagrantes forjados estão se tornando cada dia mais comuns em manifestações como esta - e isto não pode levar ao silenciamento; cada injustiça destas deve servir de motivo para mais  manifestações - seja contra o preço absurdo das passagens e o cartel do transporte coletivo em Joinville, seja contra qualquer outra das mazelas sociais do país. 

Ou corremos o risco de silenciarmos-nos para sempre. 

A validade de movimentos sociais - parte II - o extremismo em grupos: direitos sociais

Parte I <

Há 10 dias eu falei sobre os fatores que podem levar atores dentro de movimentos sociais a se radicalizarem e virarem uma paródia do movimento a que faziam parte, facilmente se reconfigurando em um grupo de ódio - quando já não tem sua gênese como tal. Nesta segunda parte vou trabalhar mais a fundo alguns dos grupos de ódio, e como estes se tornaram o que são, juntamente com um detalhamento do efeito da Câmara de Eco.

Echo Chamber Effect e a validação de discurso

O efeito da câmara de Eco é bem estudado em termos de Mass Media, mas suas implicações em termos de discurso coletivo são claras; em termos de comunicação de massa, o efeito de câmara de eco pode ser resumido de maneira simples: uma voz específica gera um discurso (por exemplo, o discurso do Tea Party, nos EUA), que é retransmitido e repetido por media de massa de maneira acrítica, gerando se a sensação de que aquele discurso é universal. O mesmo discurso é reproduzido e validado por outras vozes, e se torna um ponto de discussão "oficial", até o ponto em que, de tanto ser repetido e revalidado, o que sobra como "verdade" é alguma versão extremada do original[1].

O efeito é ainda mais notável em termos de mídia online: como apontado por Wallsten (2005), ao navegar por redes sociais, forums online, blogs e sites de notícia, usuários tendem a se dirigir aqueles que validam suas posições políticas e ideológicas.[2]. Como mencionado na parte I, o resultado é que o "debate" proposto pela web inexiste: posições alheias são abordadas com espantalhos, quando não com insultos, e debates rapidamente se degeneram em repetições do mesmo argumento, sem crítica ou refutação. Da mesma maneira, argumentos e discursos caluniosos ou odiosos circulam sem crítica, visto que quase todos os leitores de um determinado blog anti Obama concordam com qualquer declaração anti-obama, e qualquer voz contrária é silenciada como "dem".

Dessa câmara de eco "involuntária" por si só já se gera uma miríade de discursos de ódio e de recusa de levar-se em consideração dados e opiniões em contraditório. Tentativas de discutir programas sociais entre grupos republicanos ou PSDBistas, por exemplo, são facilmente silenciadas com espantalhos como "bolsa vagabundo" e "pobre tem filho pra ganhar welfare"; posições sem embasamento na realidade, mas que são repetidas com tanta frequência que se tornam "reais" - quando discursos de ódio não são banalizados por isso[3].

Porém, há de se levar em conta a criação deliberada de uma câmara de eco por certos grupos sociais e formadores de opinião: como vai se tornar claro nos exemplos dados a seguir, há uma tentativa de monopólio do discurso; de marcar os "forasteiros" como mentirosos, desinformados ou como "o inimigo"; isso ocorre, por exemplo, na argumentação de que outras mídias são mentirosas e "governistas"; nos comentários fechados de blogs extremistas, permitindo o debate apenas para a concordância; em grupos que reforçam a "fraternidade" ou "sororidade" dos membros como forma de se afastar "do inimigo"; e - mais comum entre teóricos da conspiração e extremistas políticos - na acusação de que opositores são "militantes pagos" da oposição.

Ku Klux Klan e supremacia branca


Esse primeiro caso é um em que o movimento já nasce ilegítimo:  a Ku Klux Klan[4], conjunto de organizações racistas norte americanas. A primeira entidade a usar o nome KKK foi fundada em 1865, pelo general Nathan Bedford Forrest, no Tenesse. O objetivo, impedir a integração social dos negros recém libertos. Para isso usava de intimidação e linchamentos, junto com fuzilamentos dos "bandidos negros. Conhecida por estas práticas de violência contra a população negra e os "traidores da raça", a primeira KKK foi tratada como uma organização terrorista e debandou em 1872[5].


Uma nova e mais violenta KKK surgiu em 1915; usando dos mesmos signos - como a linguagem e a vestimenta - que a original,  a segunda KKK modernizou e institucionalizou o racismo americano. Recrutava membros de forma corporativa, incluindo taxas de adesão e comissões para os recrutadores;  formou diretórios estaduais e federais, agindo abertamente, como se fosse um partido político e chegou até a ter um jornal oficial (The Good Citizen, vulgo, o "Cidadão de Bem"[6]). Ao mesmo tempo, tinha um discurso muito mais radical que a original. Não apenas era contra a cidadania negra (e a mera existência do negro), como era a favor da moralização pública, da "higienização da política" (que deveria ser '100% americana'), e contra "a ameaça católica". A segunda KKK iniciou a prática de queimar cruzes e atacar a casa de negros e imigrantes. Essa KKK chegou ao seu fim nos anos 40, devido a dissidências internas.

A ultima e atual KKK - e a mais violenta - surge após a segunda guerra mundial. Como a original, sua meta era evitar a integração social de negros, judeus e imigrantes, através do uso da violência. Ao contrário da segunda, essa KKK segue uma estrutura mais tradicional de movimentos sociais: é descentralizada, organizada em células independentes entre si, com poucas "lideranças" de fato. Desde então a KKK esteve envolvida em tiroteios, atentados a bomba, linchamentos e sequestros. Também está relacionada ao forum neonazista Stormfront. Em tempos recentes, algumas células da KKK tentaram passar uma imagem de legitimidade ao grupo - sem renunciar ao ódio, mas pintando o como algo "justificável" e "não tão ruim assim" [7].

O reflexo na resistência e na supremacia negra


A questão da KKK serve de um importante nexo comum em uma série de grupos extremistas derivados dos movimentos civis dos anos 50 e 60. Enquanto o nome mais famoso do movimento negro à época é inegavelmente o reverendo Martin Luther King, o discurso de paz não era o único que estava ligado a luta contra a segregação e a discriminação. É nesse período que surge o completamente legítimo discurso do "Black Power" e do orgulho negro - não uma expressão de superioridade, mas de empoderamento e afirmação diante do preconceito [8].


A maneira de expressar esse discurso, no entanto, variava. Mais notoriamente, para o Black Panther Party, a manutenção do poder negro era uma declaração de guerra contra uma estrutura de poder primariamente branca - e que justificava o uso de violência contra o opressor. O BPP tinha uma pauta bem definida, ligada ao que via como uma opressão institucionalizada contra os negros, e expressava isso em um programa de dez pontos[9] ligados a direitos existenciais e justiça.

É importante ressaltar que a guerra do BPP era contra a estrutura, e não contra a sociedade branca: ao mesmo tempo que frisavam a identidade afro-americana (e não mais "nigro"), o BPP não via necessidade para separatismo ou nacionalismo negro. No entanto, as ações dos panteras negras eram frequentemente vistas como ameaças - devido ao foco em militância armada do grupo - quando não violenta: entre 1967 e 1970, panteras negras mataram nove policiais (vistos como o braço armado da opressão) e feriram outros 56. Membros do partido também estiveram envolvidos em assaltos e outros crimes.

De certa maneira, embora o partido não coadunasse com crimes, a própria matriz ideológica do movimento favorecia a criminalidade: como os panteras negras consideravam toda prisão efetuada contra um negro como injusta e racista, e todo policial como opressor, isso levava ao fator de imunização contra críticas de seus membros. Como condenar um irmão criminoso, se a própria estrutura de condenação era vista como injusta, e a prisão como um ato de opressão? No entanto, a maior parte da perseguição e condenação contra os panteras não vinha de atos criminais ou do uso da violência: o problema maior era a matriz marxista do grupo, em plena guerra fria - questão que levou o BPP a ser um dos movimentos sociais fortemente monitorados pelo FBI [10].

Enquanto os Panteras Negras padeciam de uma mentalidade radical que levou a decisões não estrategicamente sólidas - mas tiveram grande importância para os movimentos sociais - a época também deu a luz a duas outras vertentes do "Black Power": o nacionalismo negro e separatismo negro - aqui representando brevemente por Malcolm X; e a supremacia negra, aqui representada pela United Nuwaubian Nation of Moors e seu grupo "mãe", a Nação do Islã (grupo ao qual Malcolm X foi dirigente).

Malcolm X foi uma figura representativa na luta por direitos civis, representando uma posição completamente oposta a de Martin Luther King; para o ativista islâmico, a proposta pacifista de King e da NAACP (National Association for the Advancement of Colored Peoples) era a solução de um covarde, e o reverendo um capacho do estabelecimento branco; o discurso "I Have a Dream", uma farsa [11]; X não via possibilidade para uma "convivência pacífica" entre brancos e negros. Sua proposta era outra: o isolamento dos negros em comunidades autoorganizadas, sem a influência "moralmente decadente" do ocidente branco.

A doutrina da Nação do Islã e de Malcolm X era uma de pan-africanismo e de isolacionismo; o branco era naturalmente opressor, a convivência impossível, e a solução era a criação de estados negros isentos da presença branca, como uma "medida provisória" até que todos os afro-americanos pudessem retornar a África. [12]. Para esses fins, X era favorável ao uso de violência contra o establishment branco. Em 1963, X abandonou a ideologia de separatismo, embora ainda fosse favorável a autorganização das comunidades negras. No entanto isso lhe garantiu o ódio da Nação do Islã e nenhuma simpatia renovada da sociedade branca.

Seu antigo grupo, no entanto, assim como a United Nuwaubian Nation Of Moors[13], vão um passo além do separatismo:  cerne ideológico dos dois grupos advém da mesma mentalidade da Ku Klux Klan, apenas invertida: a ideia de que negros são inerentemente superiores aos brancos, e que o uso de violência contra não negros é justificado por ser não só uma ferramenta contra a opressão, mas por não ter vítimas "reais".

Ambas se baseiam em ideias pseudo científicas para atestar a supremacia dos negros sobre os outros: segundo a nação do Islã, os negros são o "povo original" (fato que está correto), e todos os outros foram gerados "através de experimentos científicos"[14] - no caso da UNNM, "através do cruzamento com animais" foram gerados os brancos são "a espécie mais inferior, uma raça de soldados sem consciência" - a UNNM também clama que negros africanos são os verdadeiros nativos americanos[15]. Para a Nation of Islam[16], o discurso é diferente, mas nem tanto: brancos e asiáticos são demônios, e o Islã negro é a unica forma de salvação (foi o contato com muçulmanos brancos que fez Malcolm X abandonar a NOI, em 1963. O isolacionismo aqui se demonstra como uma forma de manter controle).

Vale lembrar que esses dois grupos são minorias extremas e pouco representativos do movimento negro: sua presença aqui serve para demonstrar a radicalização de um pequeno segmento de um movimento plenamente válido como os movimentos de integração racial pode levar ao ponto da criação de um grupo identico em mentalidade ao pior do que se combatia.


Transmisoginia feminista


Aqui novamente trato de uma minoria dentro de uma minoria no movimento feminista: um segmento dentre as radfems marcado por uma intensa transfobia e um intenso desprezo por todos que não são parte do movimento . Derivado da segunda onda do feminismo, o feminismo radical [17] foi uma voz pequena dentro do mar que é o movimento feminista. Enquanto as feministas radicais dos anos 60 se voltavam para um pensamento "igualitário radical", com a abolição de papéis de gênero, muitas das radfems contemporâneas, emergentes graças a internet, tomam uma posição de separatismo radical.


A posição dessas novas radfems - ou TERFs (Trans Exclusionary Radical Feminists [18]) vêm de uma vertente especifica, o lesbianismo radical, pautado na ideia de que heterossexualidade é opressão, e que o lesbianismo é uma decisão política, não uma questão de orientação individual [19]. Na posição desta minoria, o convívio com homens em si é ceder a opressão - um relacionamento com um, traição e se sujeitar a uma relação inerentemente abusiva.

Enquanto a NOI e a UNNM são grupos que tem expressão de fato, esse segmento do feminismo radicalizado parece restrito aos meios online. Nesses meios, demonstra todas as estratégias listadas de monopolização do discurso: os comentários em blogs e grupos de discussão são abertos apenas para a "sororidade"; as não simpatizantes da causa são tratadas como "manipuladas" ou "traidoras"; críticas a discursos radicais são tratadas como "opressão" e não podem ser feitas por que "já se tem homens para nos oprimir"; discursos ciêntíficos são tratados como mentiras para a opressão da mulher, e o mero convívio com homens é visto como violência e opressão[20]

Porém o ponto mais notável para este artigo deste nicho do feminismo radical está na estranha relação que elas tem com mulheres trans, homens trans. Essa relação é marcada há anos por uma transfobia[21] notável, expressa particularmente no discurso amplamente difundido na blogosfera radfem de que não existe transsexualidade (o que pode ser visto em páginas do facebook como era de XYsperar, e nos blogs linkados abaixo), e que mulheres trans são na verdade homens oportunistas buscando se infiltrar em espaços femininos [22] enquanto homens trans são vitimas da opressão levadas a misoginia. Sinais dessa relação de ódio contra as mulheres trans já se mostravam nos anos 70, com obras como o livro "The Transsexual Empire", da feminista radical Janice Raymond - que alegava que transsexualidade era um complô masculino para acabar com a emancipação feminina [23], assim como em espaços para "womyn born womyn" em eventos feministas nos EUA.

Novamente lembro que isso é um segmento pequeno dentre o feminismo - apenas um que demonstra como essa distorção no discurso que advém de isolamento em uma câmara de eco; no caso, restringindo se o debate apenas a lésbicas marcadas por uma intensa repulsa à homens (que poderia ser chamada de misandria, mas é um debate no qual não quero entrar), abriu-se a porta para um discurso que marca mulheres trans como sendo "homens infiltrados" e portanto "predadores naturais", devido ao tom alarmista do debate. Essa relação de medo e ódio facilmente se torna um pretexto para a exclusão das "falsas mulheres" e para a alegação de que mulheres trans não sofrem preconceito pois são homens. Da mesma maneira, homens trans são uma ameaça pois é uma "irmã" que juntou-se ao inimigo. O extremo foi um grupo TERF do colorado se aliar com conservadores para assediar uma jovem trans [24].




[1] http://www.sourcewatch.org/index.php?title=Echo_chamber;
http://www.dailykos.com/story/2004/06/24/34812/-John-Gorenfeld-Moon-the-Messiah-and-the-Media-Echo-Chamber

[2] Wallsten, Kevin (2005-09-01). "Political Blogs: Is the Political Blogosphere an Echo Chamber?". American Political Science Association’s Annual Meeting. Washington, D.C.: Department of Political Science, University of California, Berkeley;
http://www.wired.co.uk/news/archive/2013-05/1/online-stubbornness

[3] http://journal.media-culture.org.au/0006/cyberhate.php

[4] http://www.lifepaths360.com/index.php/the-ku-klux-klan-in-american-history-5-23012/

[5]http://archive.adl.org/learn/ext_us/kkk/history.html?xpicked=4&item=kkk

[6]http://en.wikipedia.org/wiki/The_Good_Citizen

[7] http://kkk.org/kkk-beliefs

[8] http://mlk-kpp01.stanford.edu/index.php/encyclopedia/encyclopedia/enc_black_power/- leitura adicional http://www.amazon.com/Black-Power-beyond-Borders-Contemporary/dp/1137285060

[9] http://www.marxists.org/history/usa/workers/black-panthers/1966/10/15.htm

[10] http://vault.fbi.gov/Black%20Panther%20Party%20

[11] "While King was having a dream, the rest of us Negroes are having a nightmare"; autobiografia

[12] http://edsitement.neh.gov/lesson-plan/black-separatism-or-beloved-community-malcolm-x-and-martin-luther-king-jr








[20] http://witchwind.wordpress.com/ - juntamente com o blogroll, para exemplos.




segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Davizinho

Davizinho é um cidadão de bem; é uma pessoa direita - respeita as leis, paga seus impostos em dia, trata todos igualmente, luta pela democracia e pela liberdade. É integro e coerente, bem informado e respeitoso.

Ou assim ele gosta de pensar... Davizinho é um tipo bem comum, que repete os mesmos bordões de senso comum para tudo - mas é um cidadão correto e integro, não é?

Quer dizer... ele respeita as leis de verdade né? Nada de errado em comprar contrabando, em piratear, não é? "Bandido bom é bandido morto", diz Davizinho, sua resposta pronta para a violência urbana - mas quando tem que mostrar documentação na blitz, é "abuso de autoridade". Para manifestante, a resposta pronta é bala de borracha - mas pro empresário que usa mão de obra irregular? "O estado tem que tirar a mão da economia". O rapazote que lhe abordou de madrugada? Tem que ser jogado na cadeia pro resto da vida! Agora, o colega que foi processado por racismo? "Ah, mas e a liberdade de expressão?".

Ele trata todos igualmente, ou assim gosta de pensar. Davizinho não é racista - ora, ele sequer acredita que isso exista! Não, o problema, diz ele, é que os negros se vitimizam demais e o branco é oprimido nisso. "Racista, eu? Ora, mas minha emprega é negra!" responde; "A polícia não é racista, tem PMs negros", alega; "Se tantos negros não fossem bandidos, não teria porque barrar eles", defende - sempre tapando os olhos. Ele desviar quando vê o rapaz de pele mais escura vindo a distância não tem nada de racismo, não... é só precaução. "Esse é o tipo do bandido", explica.

Tampouco é homofóbico - só não quer essa "depravidade" perto dele. "Quer ser gay, é escolha sua", diz, "Só faça isso longe da minha vista". Pro Davizinho típico, que totalmente não é homofóbico, vivemos uma ditadura gay. A mera ideia de um beijo gay na TV lhe causa repulsa; legalizar o casamento civil, uma afronta aos direitos individuais - mas como afronta, ele não consegue explicar. E se o filho for gay? "Não tenho que me preocupar com isso, meus filhos serão criados direito". Pois como todos sabem... isso aí de viadagem? É pai relapso.

Davizinho acredita piamente na meritocracia - e por isso, se opõe intensamente à programas sociais. "Depois pobre se enche filho pra ganhar bolsa família e não ter que trabalhar", reclama o Davizinho, tirando informação sabe se lá de onde. Se ele conseguiu chegar onde está, por que esses vagabundos não conseguem? Afinal, ele também é pobre - certo que estudou em colégio particular e já tirou férias na Europa, mas a ajuda dos pais nada teve a ver, não é?

Ao menos ele é bem informado... Quer dizer, ele não lembra quando foi a última vez que leu um jornal - todo mundo sabe que a mídia é governista e mentirosa. Do que importa, ninguém cobre: Ninguém fala da perseguição contra os empresários; dão espaço para "vagabundas", mas não se fala de como o homem é oprimido; cheio de cobertura de protesto, deviam proíbir isso (a cobertura. O protesto, Davizinho já proíbiu na sua cabeça).

Os mensaleiros foram julgados e condenados, mas Davizinho ainda bate nessa tecla. "O maior esquema de corrupção da história", diz - e quando confrontado com esquemas maiores? "Tem muita coisa que não foi descoberta porque a mídia petista acobertou!". Seu envolvimento com as notícias se resume aqueles comentaristas que dizem o que ele quer - tipo aquela moça que falou do carnaval... Ela falou agora dos bárbaros invadindo o espaço de bem né?

Bom mesmo era na ditadura - não que Davizinho admita isso: quer dizer, ele admite que é a favor dos militares. Só não admite que era uma ditadura, porque "ditadura é coisa da esquerda". E de esquerda ele entende: nazismo? esquerda. Ditaduras? Todas de esquerda! Obama? Comunista! Partidos no Brasil? Todos de esquerda. Ele ouviu assim. Aquela verdade que vem da barriga, e não do cérebro - essa é o bastante pro Davizinho

É. Davizinho é um cidadão de bem... Mas ele é bem intencionado, e não é isso que importa? O seu coração está no lugar certo, pensa o Davizinho - ele só quer livrar a sociedade desses parasitas e gerar um espaço onde o cidadão bem seja seguro e protegido contra os "bandidos". E não é isso que importa?

*Qualquer semelhança com Davis reais ou fictícios é mera coincidência.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

O Rolezinho e O ódio em palavras

Essa semana muito se comentou sobre os "rolezinhos" nos shoppings - eu mesmo escrevi dois textos a respeito das reações - e disso uma face podre da sociedade brasileira foi revelada... Aquela que diz "não sou racista, mas...". A mesma que tanto adora  a expressão "cidadão de bem" e "homem de bem". A acusação de racismo e elitismo quanto ao assunto rolezinho tem sido veementemente negada pelos mesmos que "não são racistas" - e para demonstrar o grau de ódio, eu tomei a liberdade de pegar um sampling de comentários de duas postagens: a matéria sobre rolezinhos no shopping Muller, na página de um jornal joinvillense, e a matéria "Rolezinho nas palavras de quem vai", do portal G1. O resultado é chocante.

Começando "leve": para a pessoa ao lado, os jovens que foram ao shopping Muller nesta semana não estavam interessados em socializar: Era tudo parte de um plano para facilitar "os roubos" (embora o shopping não tenha relatado qualquer ocorrência durante o rolezinho). Não: esses pobres indo para o shopping é para cometer crimes, nada mais.

Seguindo a retórica da nova direita conservadora, é culpa do "ensino marxista". A revolta com a "juventude decadente" não é novidade, e nem imagina o autor do comentário que para a geração dos seus bisavós, os seus avós é que só queriam drogas (que já foram legalizadas, no tempo dos seus e meus tataravós), putaria e rolezinho. O ataque ao funk é só mais um sintoma do ódio contra o que é "cultura de preto". O comentário sobre "vai trabalhar" foi um que se repetiu, e muito. Engraçado é que para o jovem de classe média que vai no shopping com os amigos, ninguém diz isso.

Mais uma de discurso pronto da direita conservadora: "aahh, se apenas legalizassem o trabalho infantil e prendessem menores infratores como adultos...". Eu já discorri sobre o porque de ser contra a redução da maioridade penal; Já o fim do trabalho infantil foi uma questão humanitária, e é um ponto que inexiste em países desenvolvidos; Me surpreende o apego brasileiro a uma prática que só sobrevive em países subdesenvolvidos.

Aqui vemos a primeira demonstração explicita do culto a violência como solução que a direita brasileira tanto adora. Em um único comentário, o autor: reprime quem deseja conhecer pessoas novas "por não ter idade para isso" (não estava ciente de que tem se idade para poder ter amigos); diz que isso é culpa de pai sem pulso pra "por os filhos no lugar; condena mães solteiras como putas e os pais como otários manipulados (o clássico discurso machista de "mulheres querem nos extorquir"); e para fechar defende a violência física como solução para o problema de... querer ir ao shopping com os amigos.

Comentário duplo. Primeiro a ignorância de dizer que a ausência de proibição formal significa que não há preconceito, depois  "é preciso que pareçam corretos" (leia, se encaixem no meu padrão de "pessoa de bem"). Mas a chave de ouro é o segundo comentário - a demonstração de elitismo musical sobre o gosto alheio; tenho que citar aqui que, apesar das letras muitas vezes simplórias, o Funk é sim uma expressão cultural legítima, e ao redor da qual gira uma multitude de elementos de crítica social, de expressão do excluído e de relações simbólicas com o poder - de maneira similar ao Rythm&Blues e o Hip Hop, ambos antes criticados por "imoralidade e decadência" (Assim como o tão amado Rock'n'Roll, cuja cultura gira em torno de drogas, e a misoginia abunda nas letras). O estilo já serviu de base para mestrados, ressalto.

O comentário embaixo foi feito pela mesma pessoa do comentário "de invadir um baile funk". Há um grau impressionante de simplismo no pensamento deste cidadão: sua maneira de justificar o seu preconceito é usar como base a violência na periferia - aquela cujos cidadãos são hostilizados devido a mentalidades como a sua, situação que abre as portas para o estado paralelo da criminalidade. Mas ainda mais insensível é comparar ser chamado de "Playboy" com o tratamento "preventivo" como bandido - afinal, resta ao cidadão provar que não é bandido, não?

Eu vou ser breve nessa: alguém pode me explicar qual o crime cometido em ir ao shopping? Ressalto que segundo o Muller, não houve nenhum incidente no rolezinho ocorrido, mas para o cidadão "bem informado", o mero ato é o bastante para ocorrer pena de prisão.

Esses se referem à matéria do G1. Primeiro temos o combo do "só me faltava essa gente no meu shopping" e "vai trabalhar vagabundo" (No fim de semana - dirigindo-se a jovens que trabalham), argumentos "clássicos" de quem não tem preconceito contra jovens pobres, não é? Mas o ponto mais notável é o comentário seguinte: "procurem a bananeira mais próxima". O velho padrão racista de comparar negros com macacos ainda está em voga. E não duvido que o autor negue a conotação racial do comentário.

Aqui temos mais dois chamados pela violência: um dizendo que mataria quem chegasse perto se "ameaçassem a integridade da sua família" (o que como pode ser visto já fora do Brasil é algo muito subjetivo, quanto mais onde se acha que pobre junto é arrastão) e o outro pedindo que se prendesse de imediato quem... vai em grupo no shopping... e depois se "eliminasse" quem não aprendesse a se comportar "como gente" (leia: do jeito que eu quero). Eu vou deixar isso bem explícito: o que esse cidadão sugeriu é campo de concentração para "maloqueiro".

A última é quase engraçadinha. Quase: temos aqui um cidadão insinuando que eles merecem serem brutalizados pela polícia pelo corte de cabelo - e que esse corte de cabelo, típico da juventude da perifieria, é coisa de bandido. É como o "cabelo ruim" da negra: racismo disfarçado de "opinião inocente sem nada contra".

Aí está um pequeno sampling do ódio levantado pelos rolezinhos. O Chuva Ácida também comentou a questão aqui.  O que posso comentar a mais é o seguinte: primeiro, me surpreende a inversão de culpa que está ocorrendo no país; a ideia fixa de que tem que se provar que não é bandido (e como um comentário acima prova, a ausência de crimes é prova de crimes para esses "informados"). Movidos a medo e ignorância, vem como certa a criminalidade dos jovens rolezeiros - e daí justificada a violência contra eles - e sem dizer por que crime.

A segunda é bem breve: Quando um dos "intelectuais" da direita brasileira solta uma coisa dessas, não é de se surpreender a ignorância dos leigos.


E isso que nem comentei a resposta padrão a críticas por parte dos autores desse tipo de comentário:

Se tem pena, leva pra casa.