quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

A validade de movimentos sociais - parte II - o extremismo em grupos: direitos sociais

Parte I <

Há 10 dias eu falei sobre os fatores que podem levar atores dentro de movimentos sociais a se radicalizarem e virarem uma paródia do movimento a que faziam parte, facilmente se reconfigurando em um grupo de ódio - quando já não tem sua gênese como tal. Nesta segunda parte vou trabalhar mais a fundo alguns dos grupos de ódio, e como estes se tornaram o que são, juntamente com um detalhamento do efeito da Câmara de Eco.

Echo Chamber Effect e a validação de discurso

O efeito da câmara de Eco é bem estudado em termos de Mass Media, mas suas implicações em termos de discurso coletivo são claras; em termos de comunicação de massa, o efeito de câmara de eco pode ser resumido de maneira simples: uma voz específica gera um discurso (por exemplo, o discurso do Tea Party, nos EUA), que é retransmitido e repetido por media de massa de maneira acrítica, gerando se a sensação de que aquele discurso é universal. O mesmo discurso é reproduzido e validado por outras vozes, e se torna um ponto de discussão "oficial", até o ponto em que, de tanto ser repetido e revalidado, o que sobra como "verdade" é alguma versão extremada do original[1].

O efeito é ainda mais notável em termos de mídia online: como apontado por Wallsten (2005), ao navegar por redes sociais, forums online, blogs e sites de notícia, usuários tendem a se dirigir aqueles que validam suas posições políticas e ideológicas.[2]. Como mencionado na parte I, o resultado é que o "debate" proposto pela web inexiste: posições alheias são abordadas com espantalhos, quando não com insultos, e debates rapidamente se degeneram em repetições do mesmo argumento, sem crítica ou refutação. Da mesma maneira, argumentos e discursos caluniosos ou odiosos circulam sem crítica, visto que quase todos os leitores de um determinado blog anti Obama concordam com qualquer declaração anti-obama, e qualquer voz contrária é silenciada como "dem".

Dessa câmara de eco "involuntária" por si só já se gera uma miríade de discursos de ódio e de recusa de levar-se em consideração dados e opiniões em contraditório. Tentativas de discutir programas sociais entre grupos republicanos ou PSDBistas, por exemplo, são facilmente silenciadas com espantalhos como "bolsa vagabundo" e "pobre tem filho pra ganhar welfare"; posições sem embasamento na realidade, mas que são repetidas com tanta frequência que se tornam "reais" - quando discursos de ódio não são banalizados por isso[3].

Porém, há de se levar em conta a criação deliberada de uma câmara de eco por certos grupos sociais e formadores de opinião: como vai se tornar claro nos exemplos dados a seguir, há uma tentativa de monopólio do discurso; de marcar os "forasteiros" como mentirosos, desinformados ou como "o inimigo"; isso ocorre, por exemplo, na argumentação de que outras mídias são mentirosas e "governistas"; nos comentários fechados de blogs extremistas, permitindo o debate apenas para a concordância; em grupos que reforçam a "fraternidade" ou "sororidade" dos membros como forma de se afastar "do inimigo"; e - mais comum entre teóricos da conspiração e extremistas políticos - na acusação de que opositores são "militantes pagos" da oposição.

Ku Klux Klan e supremacia branca


Esse primeiro caso é um em que o movimento já nasce ilegítimo:  a Ku Klux Klan[4], conjunto de organizações racistas norte americanas. A primeira entidade a usar o nome KKK foi fundada em 1865, pelo general Nathan Bedford Forrest, no Tenesse. O objetivo, impedir a integração social dos negros recém libertos. Para isso usava de intimidação e linchamentos, junto com fuzilamentos dos "bandidos negros. Conhecida por estas práticas de violência contra a população negra e os "traidores da raça", a primeira KKK foi tratada como uma organização terrorista e debandou em 1872[5].


Uma nova e mais violenta KKK surgiu em 1915; usando dos mesmos signos - como a linguagem e a vestimenta - que a original,  a segunda KKK modernizou e institucionalizou o racismo americano. Recrutava membros de forma corporativa, incluindo taxas de adesão e comissões para os recrutadores;  formou diretórios estaduais e federais, agindo abertamente, como se fosse um partido político e chegou até a ter um jornal oficial (The Good Citizen, vulgo, o "Cidadão de Bem"[6]). Ao mesmo tempo, tinha um discurso muito mais radical que a original. Não apenas era contra a cidadania negra (e a mera existência do negro), como era a favor da moralização pública, da "higienização da política" (que deveria ser '100% americana'), e contra "a ameaça católica". A segunda KKK iniciou a prática de queimar cruzes e atacar a casa de negros e imigrantes. Essa KKK chegou ao seu fim nos anos 40, devido a dissidências internas.

A ultima e atual KKK - e a mais violenta - surge após a segunda guerra mundial. Como a original, sua meta era evitar a integração social de negros, judeus e imigrantes, através do uso da violência. Ao contrário da segunda, essa KKK segue uma estrutura mais tradicional de movimentos sociais: é descentralizada, organizada em células independentes entre si, com poucas "lideranças" de fato. Desde então a KKK esteve envolvida em tiroteios, atentados a bomba, linchamentos e sequestros. Também está relacionada ao forum neonazista Stormfront. Em tempos recentes, algumas células da KKK tentaram passar uma imagem de legitimidade ao grupo - sem renunciar ao ódio, mas pintando o como algo "justificável" e "não tão ruim assim" [7].

O reflexo na resistência e na supremacia negra


A questão da KKK serve de um importante nexo comum em uma série de grupos extremistas derivados dos movimentos civis dos anos 50 e 60. Enquanto o nome mais famoso do movimento negro à época é inegavelmente o reverendo Martin Luther King, o discurso de paz não era o único que estava ligado a luta contra a segregação e a discriminação. É nesse período que surge o completamente legítimo discurso do "Black Power" e do orgulho negro - não uma expressão de superioridade, mas de empoderamento e afirmação diante do preconceito [8].


A maneira de expressar esse discurso, no entanto, variava. Mais notoriamente, para o Black Panther Party, a manutenção do poder negro era uma declaração de guerra contra uma estrutura de poder primariamente branca - e que justificava o uso de violência contra o opressor. O BPP tinha uma pauta bem definida, ligada ao que via como uma opressão institucionalizada contra os negros, e expressava isso em um programa de dez pontos[9] ligados a direitos existenciais e justiça.

É importante ressaltar que a guerra do BPP era contra a estrutura, e não contra a sociedade branca: ao mesmo tempo que frisavam a identidade afro-americana (e não mais "nigro"), o BPP não via necessidade para separatismo ou nacionalismo negro. No entanto, as ações dos panteras negras eram frequentemente vistas como ameaças - devido ao foco em militância armada do grupo - quando não violenta: entre 1967 e 1970, panteras negras mataram nove policiais (vistos como o braço armado da opressão) e feriram outros 56. Membros do partido também estiveram envolvidos em assaltos e outros crimes.

De certa maneira, embora o partido não coadunasse com crimes, a própria matriz ideológica do movimento favorecia a criminalidade: como os panteras negras consideravam toda prisão efetuada contra um negro como injusta e racista, e todo policial como opressor, isso levava ao fator de imunização contra críticas de seus membros. Como condenar um irmão criminoso, se a própria estrutura de condenação era vista como injusta, e a prisão como um ato de opressão? No entanto, a maior parte da perseguição e condenação contra os panteras não vinha de atos criminais ou do uso da violência: o problema maior era a matriz marxista do grupo, em plena guerra fria - questão que levou o BPP a ser um dos movimentos sociais fortemente monitorados pelo FBI [10].

Enquanto os Panteras Negras padeciam de uma mentalidade radical que levou a decisões não estrategicamente sólidas - mas tiveram grande importância para os movimentos sociais - a época também deu a luz a duas outras vertentes do "Black Power": o nacionalismo negro e separatismo negro - aqui representando brevemente por Malcolm X; e a supremacia negra, aqui representada pela United Nuwaubian Nation of Moors e seu grupo "mãe", a Nação do Islã (grupo ao qual Malcolm X foi dirigente).

Malcolm X foi uma figura representativa na luta por direitos civis, representando uma posição completamente oposta a de Martin Luther King; para o ativista islâmico, a proposta pacifista de King e da NAACP (National Association for the Advancement of Colored Peoples) era a solução de um covarde, e o reverendo um capacho do estabelecimento branco; o discurso "I Have a Dream", uma farsa [11]; X não via possibilidade para uma "convivência pacífica" entre brancos e negros. Sua proposta era outra: o isolamento dos negros em comunidades autoorganizadas, sem a influência "moralmente decadente" do ocidente branco.

A doutrina da Nação do Islã e de Malcolm X era uma de pan-africanismo e de isolacionismo; o branco era naturalmente opressor, a convivência impossível, e a solução era a criação de estados negros isentos da presença branca, como uma "medida provisória" até que todos os afro-americanos pudessem retornar a África. [12]. Para esses fins, X era favorável ao uso de violência contra o establishment branco. Em 1963, X abandonou a ideologia de separatismo, embora ainda fosse favorável a autorganização das comunidades negras. No entanto isso lhe garantiu o ódio da Nação do Islã e nenhuma simpatia renovada da sociedade branca.

Seu antigo grupo, no entanto, assim como a United Nuwaubian Nation Of Moors[13], vão um passo além do separatismo:  cerne ideológico dos dois grupos advém da mesma mentalidade da Ku Klux Klan, apenas invertida: a ideia de que negros são inerentemente superiores aos brancos, e que o uso de violência contra não negros é justificado por ser não só uma ferramenta contra a opressão, mas por não ter vítimas "reais".

Ambas se baseiam em ideias pseudo científicas para atestar a supremacia dos negros sobre os outros: segundo a nação do Islã, os negros são o "povo original" (fato que está correto), e todos os outros foram gerados "através de experimentos científicos"[14] - no caso da UNNM, "através do cruzamento com animais" foram gerados os brancos são "a espécie mais inferior, uma raça de soldados sem consciência" - a UNNM também clama que negros africanos são os verdadeiros nativos americanos[15]. Para a Nation of Islam[16], o discurso é diferente, mas nem tanto: brancos e asiáticos são demônios, e o Islã negro é a unica forma de salvação (foi o contato com muçulmanos brancos que fez Malcolm X abandonar a NOI, em 1963. O isolacionismo aqui se demonstra como uma forma de manter controle).

Vale lembrar que esses dois grupos são minorias extremas e pouco representativos do movimento negro: sua presença aqui serve para demonstrar a radicalização de um pequeno segmento de um movimento plenamente válido como os movimentos de integração racial pode levar ao ponto da criação de um grupo identico em mentalidade ao pior do que se combatia.


Transmisoginia feminista


Aqui novamente trato de uma minoria dentro de uma minoria no movimento feminista: um segmento dentre as radfems marcado por uma intensa transfobia e um intenso desprezo por todos que não são parte do movimento . Derivado da segunda onda do feminismo, o feminismo radical [17] foi uma voz pequena dentro do mar que é o movimento feminista. Enquanto as feministas radicais dos anos 60 se voltavam para um pensamento "igualitário radical", com a abolição de papéis de gênero, muitas das radfems contemporâneas, emergentes graças a internet, tomam uma posição de separatismo radical.


A posição dessas novas radfems - ou TERFs (Trans Exclusionary Radical Feminists [18]) vêm de uma vertente especifica, o lesbianismo radical, pautado na ideia de que heterossexualidade é opressão, e que o lesbianismo é uma decisão política, não uma questão de orientação individual [19]. Na posição desta minoria, o convívio com homens em si é ceder a opressão - um relacionamento com um, traição e se sujeitar a uma relação inerentemente abusiva.

Enquanto a NOI e a UNNM são grupos que tem expressão de fato, esse segmento do feminismo radicalizado parece restrito aos meios online. Nesses meios, demonstra todas as estratégias listadas de monopolização do discurso: os comentários em blogs e grupos de discussão são abertos apenas para a "sororidade"; as não simpatizantes da causa são tratadas como "manipuladas" ou "traidoras"; críticas a discursos radicais são tratadas como "opressão" e não podem ser feitas por que "já se tem homens para nos oprimir"; discursos ciêntíficos são tratados como mentiras para a opressão da mulher, e o mero convívio com homens é visto como violência e opressão[20]

Porém o ponto mais notável para este artigo deste nicho do feminismo radical está na estranha relação que elas tem com mulheres trans, homens trans. Essa relação é marcada há anos por uma transfobia[21] notável, expressa particularmente no discurso amplamente difundido na blogosfera radfem de que não existe transsexualidade (o que pode ser visto em páginas do facebook como era de XYsperar, e nos blogs linkados abaixo), e que mulheres trans são na verdade homens oportunistas buscando se infiltrar em espaços femininos [22] enquanto homens trans são vitimas da opressão levadas a misoginia. Sinais dessa relação de ódio contra as mulheres trans já se mostravam nos anos 70, com obras como o livro "The Transsexual Empire", da feminista radical Janice Raymond - que alegava que transsexualidade era um complô masculino para acabar com a emancipação feminina [23], assim como em espaços para "womyn born womyn" em eventos feministas nos EUA.

Novamente lembro que isso é um segmento pequeno dentre o feminismo - apenas um que demonstra como essa distorção no discurso que advém de isolamento em uma câmara de eco; no caso, restringindo se o debate apenas a lésbicas marcadas por uma intensa repulsa à homens (que poderia ser chamada de misandria, mas é um debate no qual não quero entrar), abriu-se a porta para um discurso que marca mulheres trans como sendo "homens infiltrados" e portanto "predadores naturais", devido ao tom alarmista do debate. Essa relação de medo e ódio facilmente se torna um pretexto para a exclusão das "falsas mulheres" e para a alegação de que mulheres trans não sofrem preconceito pois são homens. Da mesma maneira, homens trans são uma ameaça pois é uma "irmã" que juntou-se ao inimigo. O extremo foi um grupo TERF do colorado se aliar com conservadores para assediar uma jovem trans [24].




[1] http://www.sourcewatch.org/index.php?title=Echo_chamber;
http://www.dailykos.com/story/2004/06/24/34812/-John-Gorenfeld-Moon-the-Messiah-and-the-Media-Echo-Chamber

[2] Wallsten, Kevin (2005-09-01). "Political Blogs: Is the Political Blogosphere an Echo Chamber?". American Political Science Association’s Annual Meeting. Washington, D.C.: Department of Political Science, University of California, Berkeley;
http://www.wired.co.uk/news/archive/2013-05/1/online-stubbornness

[3] http://journal.media-culture.org.au/0006/cyberhate.php

[4] http://www.lifepaths360.com/index.php/the-ku-klux-klan-in-american-history-5-23012/

[5]http://archive.adl.org/learn/ext_us/kkk/history.html?xpicked=4&item=kkk

[6]http://en.wikipedia.org/wiki/The_Good_Citizen

[7] http://kkk.org/kkk-beliefs

[8] http://mlk-kpp01.stanford.edu/index.php/encyclopedia/encyclopedia/enc_black_power/- leitura adicional http://www.amazon.com/Black-Power-beyond-Borders-Contemporary/dp/1137285060

[9] http://www.marxists.org/history/usa/workers/black-panthers/1966/10/15.htm

[10] http://vault.fbi.gov/Black%20Panther%20Party%20

[11] "While King was having a dream, the rest of us Negroes are having a nightmare"; autobiografia

[12] http://edsitement.neh.gov/lesson-plan/black-separatism-or-beloved-community-malcolm-x-and-martin-luther-king-jr








[20] http://witchwind.wordpress.com/ - juntamente com o blogroll, para exemplos.




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