terça-feira, 28 de janeiro de 2014

"É só uma música"....

Vejam o vídeo ao lado, e me digam o que chama atenção. Não sei quanto aos leitores, mas algo que me cheira intensamente errado em direcionar à crianças a mensagem "quem pecar vai pagar, quem pecar vai morrer"; cheira me a terrorismo psicológico, e tom alegre dessa "música" (termo que uso com muita generosidade) só torna o efeito mais perturbador.

Sei que vai ter quem diga que é uma "expressão de fé"; que é um dogma da fé cristã, e que é liberdade religiosa, etc; Mas eu pergunto, fariam a mesma forma de defesa se fosse de um grupo islâmico, ou gritariam "terrorismo"? Fosse um grupo de umbanda dizendo similar, haveria defesa, ou haveria uma horda religiosa clamando que era "macumba" corrompendo as crianças (de maneira similar a que fazem com, bem, mídia em geral)? Ou se fosse uma música assim por parte de um movimento político - digamos, "Capitalista vai pagar, Capitalista vai morrer" - haveria como defender isso? Se fosse sobre um grupo étnico? "Judeu vai pagar, judeu vai morrer?", ou se fosse invertida, "Cristão vai pagar, Cristão vai morrer?" - é mais fácil perceber o ódio assim, não?

Não me é relevante no que as pessoas acreditam - não deveria ser relevante para ninguém as crenças de outrem; o que é relevante é como essas crenças são expressas. E neste caso, temos alguns problemas claros. Primeiro, o misto de estigmatização do outro e exaltação do "grupo": "eles", pecadores, condenados e "Nós", filhos de deus. O segundo é o discurso de violência simbólica daí derivado: "eles" tem que pagar e merecem morrer; sua vida não é de digna, não são merecedores do amor. Doutrinado em uma lógica destas, não é de se admirar que alguns (e não poucos) achem justo politicas para restringir o direito do "pecador", quando não o uso da violência contra o mesmo.

Essa manipulação emocional é incrivelmente comum; foi usada contra negros, contra imigrantes e contra minorias em geral ao longo da história. E novamente - o argumento de fé, de que é "simbólico" não se aplica; a sua compreensão pela fé não precisa e nem deve ser seguida por quem não compactua com ela, ainda mais depois de lideranças religiosas emitindo discursos contra os "pecadores" como culpar gays pelo atentado em Boston; Dizer que veriam o sepultamento do último pai de santo; sugerir, quanto a Síria, que se matassem todos eles e deixassem "Deus separar"; quando se vê uma professora humilhar publicamente um estudante por ser budista; quando se tem um quadro destes, a defesa padrão de "odiamos o pecado, não o pecador". 




Agora olhem o segundo clipe - esse é um caso mais... chocante. O que se tem aqui é uma apologia explícita do estupro, visto como uma exaltação da virilidade e da masculinidade. Quando disponível, o vídeo-clipe da música conseguia deixar a situação ainda pior, começando pela introdução do clipe, retratando um cenário "clássico" de estupro (e o único em que algumas pessoas acreditam que seja estupro - o do agressor em uma área escura e isolada), seguida por uma letra centrada em um agressor orgulhoso e uma mulher amedrontada.

Enquanto isso, a culpa, sempre, é da vítima.
Em uma só tacada, a banda Abrakadabra consegue insultar e desvalorizar vítimas de estupro, enquanto enaltece o agressor e pinta uma agressão tão grosseira como um ato "de paixão e prazer" ("Aí, que sonho bom"), e insinua que no fundo mulheres querem ser estupradas. Em defesa, o máximo que a banda fez foi postar uma única imagem condenando a violência contra a mulher. Nenhuma nota de retratação; nenhum pedido de desculpas. Uma foto, e supostamente, isso basta para dizer "não apoiamos estupro, embora tenhamos feito uma musica glorificando isso".

Apologia ao estupro: também em propagandas, esta do ano passado.
Antes que digam "é só uma música", vamos lembrar que o discurso ao qual alguém é exposto tem sim influência em sua mentalidade; no caso, temos uma banalização e exaltação do estupro dentre uma sociedade que já trata a vítima como culpada dessa agressão, e frequentemente trata o agressor como inocente - e não, quando falo de "uma cultura", não estou falando da subcultura do funk (até porque Rock, Jazz e até a "tão culta" Opera tem letras mais explicitas nesse sentido - algumas sensíveis, outras mais ofensivas...); estou falando da "cultura ocidental" como um todo - como demonstrado em caso após caso após caso de estupro onde a vítima é humilhada, insultada e até agredida como resultado de ter feito uma denúncia. Nesse quadro, uma música enaltecendo o ato vai além de ser ofensiva: é irresponsável. [1] Não digo que ela sozinha vá ser culpada por estupros, mas como parte de um quadro social, tem um que de culpa para cada estuprador dentre seus ouvintes, e mais ainda para cada um que diz que "no fundo ela queria"; Ignorando-se isso, ainda assim é culpada pela brutal insensibilidade, e a estupida negligência com que aborda um tópico tão sensível. 

O que realmente me surpreende, no entanto, é que enquanto "piadas" e músicas claramente ofensivas são tratadas como incriticáveis - nota: não estou pedindo censura aqui, mas realmente acho que são no melhor cenário, irresponsáveis e mal pensadas; no pior, discursos deliberados de ódio - a representação de personagens LGBT é vilipendiada como "propaganda Gay" (e enfrenta tentativas de censura); a cobertura de protestos, rolezinhos e revoltas é condenada "pra não dar ideia"; auto proclamados defensores da "livre expressão" querem proibir "doutrinação comunista", usando de intimidação para isto; em redes sociais, abunda a ideia de "prender quem ouve Funk", e piadas inocentes com Jesus como protagonista (e que nada dizem a respeito dele, ou da fé cristã) são alvo de um processo buscando censura (numa versão por ora menos violenta do escândalo das caricaturas de Maomé). É isso que me surpreende: a imensa tolerância que se tem com o absurdo - mas a tolerância nula com "o que eu discordo". 

[1] Um comentário: muitas das pessoas que vi "defenderem" como só uma música (ao mesmo tempo usando insultos raciais para descrever o tipo de gente que a ouve) se opunham a presença de personagens LGBTs por fazer "apologia a homossexualidade". 


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