quarta-feira, 7 de maio de 2014

Isso é justiça?

Fazer "justiça com as próprias mãos" está virando uma coisa comum, ou ao menos assim parece: neste fim de semana, pela 21ª vez no ano, uma pessoa foi morta como resultado de justiçamentos. Praticamente um linchamento fatal por semana, um total de 188 justiçamentos desde fevereiro - mais de um por dia. Em Guarujá, a dona de casa Fabiane Mara de Jesus, acusada de sequestrar e matar crianças para rituais de magia negra¹. Ontem, pouco após a meia-noite, outro homem faleceu em Juazeiro do Norte. Como ocorreu com Alailton Ferreira, Marcelo Pereira da Silva, e Adilson Feliciana, não há sequer prova de que os crimes do qual foram acusados ocorreram. Mas isso não impediu que fossem mortos. Ou que suas mortes, em sua maioria, fossem ignoradas pela justiça

Também se tornando lugar comum está a defesa dessa barbárie. Entre os comentários padrão temos os costumeiros berros online de "bandido bom é bandido morto", "tem mais é que matar mesmo", "queria ver na mão do povo" e outros gritos enfurecidos em reação a qualquer crime; O velho e batido "ninguém apanha por nada" (mesmo provado que a vítima não fez nada; é o conhecido de radialistas "mas alguma coisa ele fez"); "ah, agora é inocente, queria ver se estuprasse tua filha" (quando o agredido foi acusado de... pequenos furtos - a escalação do crime como defesa da violência); e outras coisas mais grotescas - sempre jogando a culpa na vítima, querendo investigar "o que ela fez de errado" (e não "porque ela foi atacada"), e na falta de provas concluindo "deve ter escondido bem". 

A cena infame, que trouxe o horror a tona:
mesmo o rapaz, nu e ferido, sendo infrator, isso é justo?
Não bastasse isso, em tempos recentes tem se "formadores de opinião" e páginas "jornalisticas" estimulando a violência. Algumas, ao mesmo tempo que criticam a ação dos "justiceiros", agem como se o problema fosse só o fato de algumas vítimas serem inocentes; outras, mesmo sabendo que sequer houve crime, ainda tentam especular que a vítima talvez não fosse inocente (ou que é culpada por ter os amigos errados). Como se a barbárie pode se tornar justa por ter uma desculpa, ou se direitos básicos fossem por água abaixo por se ter culpa. 



Mas nunca assumindo o que claramente fazem: Rachel Sheherazade não "defendeu o linchamento" só disse que era "compreensível" o que chamou de legítima defesa da sociedade. Datena, Prates e tantos outros, ao dizer que bandido bom é bandido morto, que tem que encher de porrada, e etc, não estão defendendo a violência: "eles nunca disseram que era pra bater em ninguém!" dizem os fãs. A página do facebook, que divulgou os boatos (algo que jornalismo compromissado com a verdade não faz) e o retrato falado que culminaram na morte de Fabiane "nunca acusou ninguém, sempre disse que eram boatos" (como se boatos não espalhassem o medo e ódio - afinal o velho libelo de sangue nunca envolveu afirmar que judeus sequestravam crianças - só "disseram me que...")

Não, sem exceção lavam as mãos - imundas com o sangue de inocentes e culpados, igualmente privados de um julgamento justo, igualmente executados pelas mesmas pessoas que lhe serviram de juri, promotor e juiz. Ignora-se a responsabilidade da imprensa na esfera pública. Ignora-se o impacto que acusações levianas e impensadas podem ter na vida de alguém - lição que deveria ter sido aprendida com a Escola Base, vinte anos atrás. Quantas vidas mais devem ser arruinadas - ou perdidas - até que se aprenda a não fazer o que essa página irresponsável recentemente fez? Quanto a se a irresponsabilidade de divulgar boatos e retratos falados como fatos foi criminosa, deixo à justiça para decidir.

Ao invés disso, temos a defesa do fofoqueiro da escola, depois da briga que ele começou: "não afirmei que ciclano falou mal de beltrano, só que me contaram que". Ao invés de admitirem que seu discurso teve impacto na violência, reproduzem ainda mais esse discurso, ao dizer ora que é "compreensível", ou que o vigilantismo é culpa do estado, ora ao dizer que o problema são esses "animais/bandidos/psicopatas" travestidos de cidadão de bem. Enquanto isso, um rapaz em Gastão Vidigal morreu espancado porque uma turba o confundiu com um pedófilo


Ignora-se até a responsabilidade dos agressores: a culpa é do governo federal que é omisso (embora a segurança pública seja responsabilidade dos estados e municípios); a culpa é do caos gerado pelo PT (embora a violência urbana seja um problema de longa data, que muito antecede o governo - pífio - do PT, e tem raízes muito mais profundas do que políticas sociais); a culpa é do crime, que deixou o povo sem escolha; a culpa é do bandido (executado sem provas). E é neste último que sempre recaí a culpa: na vítima de violência "justiceira" - seja essa por parte da polícia agindo a revelia da lei (como em esquadrões da morte) ou por parte de turbas populares de cidadãos "de bem".

Suspeito no Piauí foi amarrado sobre formigueiro, como
forma de tortura.
Uma coisa que me aturdiu, e muito, foram as defesas ao justiçamento com "ninguém falou em espancar gente inocente, mas com quem é culpado é compreensível". Essa defesa (parafraseada), tão assustadoramente comum, sofre de dois problemas... o primeiro é achar que acusações bastam para saber se alguém é ou não culpado (e aí vem a obsessão em encontrar - ou fabricar - algum crime pro morto). O outro, mais grave, é achar que violência contra um criminoso deixa de ser crime - ou que autoriza a superar o crime dele, como os cidadãos de "bem" que amputaram as mãos de um rapaz acusado de furtos em Joinville.  

Mas para alguns, como dá para notar, a aura de paranoia do vigilantismo vale a falsa sensação de segurança. Cito aqui o reverendo Al Sharpton: É um peso inigualável, e difícil de se articular, nascer um suspeito e ter que operar e se comportar de maneira  a não provocar ou exacerbar a paranoia de alguém. É isso que desejamos para a sociedade? Para não ter medo do crime, viver com medo de ser confundido com um bandido e espancado ou linchado? Engraçado como essa "justiça" é a mesma aplicada em comunidades tomadas pelo crime e estados onde a justiça tribal substituí o estado de direito. Trocaremos então um grupo de bandidos por outro? Esquecemos o princípio fundamental de que se é inocente até que se prove o contrário, para trocar por "culpado à partir da primeira acusação"?

E só mais uma coisa, que diz muito sobre quem é, e quem não é linchado: 

Ah, e a falecida Fabiane Mara de Jesus deixa duas filhas, uma de treze e uma de um ano. Meus pêsames às meninas, e ao marido, que está processando a página responsável pela boataria. Uma tragédia começada pela "boa" e velha fofoca. 

¹ alguns vão lembrar que isso soa muito como o medieval libelo de sangue contra os judeus - macabramente apropriado visto a medievalidade do pensamento dos justiceiros.