segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Burocracia não é só "coisa do Brasil", e nem sempre é ruim.

O labirinto burocrático não é só "nosso" , mas muitos se
recusam a reconhecer isso. 
Muito se reclama da (admitidamente imensa) malha burocrática existente no Brasil - e com razão, visto que essa é uma inegável fonte de obstruções, lentidões e frustrações em todos os setores da sociedade. Mas há uma parte da constante reclamação sobre a burocracia brasileira que não é de forma alguma razoável:  a estranha ideia de que a lentidão burocrática existe apenas no Brasil, que o resto do mundo é desprovido de problemas burocráticos, e que só nós enfrentamos esse tipo de chateação.

Estou vivendo na Dinamarca há dois meses - uma experiência que tem sido reveladora (e me iluminado quanto a vários problemas pessoais, mas isso é outra história) - e já lidei com alguns pesadelos burocráticos desde que cheguei aqui. Para começar com os documentos: desde que cheguei, recebi já quatro documentos - e amanhã tenho que ir fazer mais um - cada qual com a sua pequena complicação. Os dois com menos problemas foram a NemID (um documento geral dos países nórdicos - e mesmo essa não foi sem transtornos¹) e a carteira de estudante da Escola Dinamarquesa de Media e Jornalismo. Tranquilos. Foram as únicas onde as vias para fazer eram óbvias. 

Sabe, não teria sido chato  fosse só a demora. O problema foi
a falta de sentido e de coerência. 
Já o CPR (vulgo a carteira de identidade/previdência social/saúde pública/tudo mais) foi um pequeno transtorno: O processo inicial foi tranquilo, e um período de espera de duas à três semanas não parece tanto quando tem que se levar em conta que é imigração. Até o ponto que o documento não veio. Aí fui atrás... em um processo que demorou muito mais tempo do que eu poderia imaginar

Duas vezes liguei para o Borgerservice: na primeira fui informado que "o documento estava no correio" e logo chegaria. Dois dias depois, ligo novamente e sou informado de que "não estava no sistema". Vou pessoalmente ao Borgerservice, e sou informado - depois de explicar o que havia me sido dito - que "meu yellow card estava no correio e logo chegaria", e que era para eu esperar mais uma semana. Depois de uma semana, lá fui eu em pessoal perguntar do meu documento outra vez... E o que tive de resposta? "O senhor não está no sistema, vai ter que fazer tudo de novo, venha amanhã com o seu passaporte e a carta do consulado concedendo o visto". E assim fiz... para ser informado que meu yellow card "estava lá havia 10 dias".

Mas esse incidente de incompetência não é o motivo pelo qual digo que aqui é um pesadelo burocrático. O fato é que tudo nos países nórdicos gira em torno de documentações, regras e regulamentações que muitas vezes não fazem sentido. Por exemplo: Aarhus é a segunda maior cidade no país, com 250 mil habitantes - uma cidadezinha para os padrões brasileiros, mas algo gigantesco para a Dinamarca. E apenas um banco na cidade realiza depósitos e transferências. Nada de depósitos ou transferências online, ou em caixa eletrônico, por exemplo. Quer abrir uma conta no banco? Você precisa da sua NemID. E depois tem que esperar de oito à 10 dias úteis para voltar ao banco para finalizar a abertura da conta. E isso se não houverem problemas. 

Burocracia não é bem isso. 
Quer imprimir algo na biblioteca estadual, fazer encomendas em algumas (muitas) lojas, comprar algo mais caro, um plano telefônico, alugar um apartamento em alguns casos? Tenha seu CPR em mãos. Precisa de atendimento médico e não é parte da União Européia? Tenha seu CPR em mãos. Documentos como esses são necessários para absolutamente tudo por aqui. E à um nível impensável para brasileiros. Claro - as reclamações mais comuns sobre a burocracia no Brasil dizem respeito a abertura de empresas e outras questões de negócios, e nesse sentido a Dinamarca está muito a frente: registro pode ser feito online (o que levanta a pergunta de porque a requisição de uma senha nova, por exemplo, não pode), e leva de duas à três semanas, ao contrário dos cinco meses do Brasil. Mas não é aquela perfeição toda. 

E aquele problema que tanto nos motivou a ir às ruas inicialmente (antes de gente que não estava nem aí para o que começou os protestos tomar conta), o preço das passagens de ônibus? Espantosos 20 kr por passagem (cerca de três euros). Há meios mais baratos, como passagens mensais (350 kr para um mês todo, cerca de 50 euros), mas ainda assim é uma facada. E caso seja pego sem passagem? A multa - administrada por uma companhia de segurança privada - é de "meros" 750 kr : 100 euros. Eu diria que a qualidade justifica - mas não justifica: até agora não vi um ônibus no horário, e já fui pego em uma cilada por um fiscal que entrou no mesmo ponto que eu, me multando antes que eu pudesse comprar minha passagem. 

Na teoria, é isso.
O fato é que burocracia é um problema mundial: é uma parte inerente da existência da infraestrutura estatal - ou me atrevo a dizer, administrativa - , e embora não tão ineficiente quanto a burocracia brasileira, a malha burocrática dos país desenvolvidos (salvo dos EUA, que é tão ineficiente quanto a nossa - pergunte a um americano, ou pesquise sobre a burocracia dos DMVs, por exemplo. Deixarei uns links sobre a burocracia americana ao fim do texto) é muito mais extensa do que a nossa. Só que é muito melhor gerida também. Enfrentamos problemas que incluem (mas não se restringem à) falta de comunicação entre departamentos, pessoal mal preparado e indisposto, corrupção e interesses escusos, falta de clareza nas normas, e conflitos entre regulações e leis estatais, municipais e federais. Talvez não haja obra melhor sobre o labirinto burocrático que as vezes se forma do que o Processo, de Franz Kafka - e o caráter surreal e onírico da obra diz muito do quão confusas são as vias burocráticas. 

Na prática muitas vezes vira isso.
Quando se pensa em governo, o que normalmente vêm em mente para a maioria das pessoas são os cargos eletivos - prefeitos, vereadores, deputados, senadores, governadores e presidentes. Mas isso é apenas uma face do governo, a mais "pública" dela. Claro, estes são os governantes e legisladores. Só que o verdadeiro trabalho é realizado nas secretarias, superintendências, departamentos e outros órgãos burocráticos que cuidam de "por a mão na massa" e transformar os planos de governo em algo real. E sim - estes são muito falhos, não por uma característica inerente, mas por problemas como os acima, e que podem (e deveriam há muito) ser resolvidos. 

A melhor maneira de pensar a burocracia (e como ela tem problemas) é pensar em governos como empresas: Ninguém é tolo de pensar que o CEO de uma multinacional é o responsável por cada ação da empresa, certo? O que se tem é uma malha de gerentes, subgerentes, diretores, executivos e administradores que vão repassando o plano de metas da empresa para algo concreto - e o mesmo acontece com o setor público. Isso é a burocracia: essa comunicação que no caso do Brasil é lamentavelmente falha, e no caso da Dinamarca... meio que cobra demais do cidadão, ao menos no meu ver. 

Pra quem acha que é só o estado que é burocrático
fonte: Murilo Gun
E é meio que cômica a obsessão que certos governantes brasileiros (cito aqui o eterno Luís Henrique da Silveira, para começar) com "descentralizar o governo" para reduzir a burocracia. A burocracia é justamente toda essa malha de setores e subsetores tentando se comunicar entre si para um fim em comum - criar mais subdivisões e outorgar mais autoridades regionais nada vai fazer para reduzir a burocracia, a não ser que o fim seja um governo "estadual" que na verdade são vários governos diferentes que não se falam - e aí o problema é mais embaixo. 

Sim, burocracia é um saco; é uma das coisas mais chatas do setor público (e como qualquer um que trabalhou sabe, é uma das coisas mais chatas dentro de empresas também, afinal a administração empresarial é ela também imensamente burocrática); Mas é também algo que é lamentavelmente necessário para a manutenção de qualquer forma de estrutura de proporções significativas, mais ainda de nível federal. Claro - a malha não precisa ser o caos que é no Brasil, mas dada às proporções será inevitavelmente avantajada. Só tem que ser bem cuidada. 


Mas que é chato é. E como. 

Dessa vez, os links ficam no fim do texto, para fins de organização

¹Entre outros transtornos: o sistema mudou minha senha sem me consultar; Para requerer outra senha, você tem que esperar a nova pelo correio; o telefone para o atendimento e suporte não funciona, os dois números disponíveis te quicam um para o outro como o anterior sendo invalido; 





Nenhum comentário:

Postar um comentário