domingo, 9 de fevereiro de 2014

Paradoxos Critica: RoboCop (2014)

Curiosamente, menos relevante que um filme de 27 anos.

Paul Verhoeven não tem sorte quando se trata de Hollywood retomar suas obras: primeiro sua excelente adaptação de "We can remember it for you, wholesale" teve uma releitura pífia no Total Recall de Len Wiseman, em 2012. Agora, 27 anos depois da mordaz crítica ao capitalismo desenfreado e a desumanização sistemática das polícias, seu RoboCop é maculado pelo remake de José Padilha. Mas o que saiu errado nisso? Como alguém que fez uma obra como Tropa de Elite, filme magistral sobre o processo de criar monstros para combater monstros que é endêmico nas polícias, pode falhar tanto nessa tarefa?

Samuel L. Jackson, na melhor atuação do filme: Um Bill O'Reily negro. 
O filme original de Verhoeven estava longe de ser um filme sutil - me atrevo a dizer que Verhoeven desconheça a palavra sutileza; ainda assim, de alguma maneira Padilha consegue ser ainda mais "na sua cara" que o original, talvez justamente pela falta daquela sátira exagerada dos fragmentos de mídia do antigo. O mais perto disso são os segmentos do programa "Novak Element", com Samuel L. Jackson como o apresentador Pat Novak - mas estes são tão idênticos a Bill O'Reily e seu O'Reily factor que mal contam como sátira. 

2014: limpo, brilhante, higienizado
e dinâmico.
Assim como no original, RoboCop é a história de Alex J. Murphy, um policial de Detroit morto em serviço e trazido devolta a vida por uma corporação interessada em ingressar na segurança publica; enquanto no original a OCP era dona de Detroit, aqui a sua subsidiária Omnicorp tem "todos os mercados do mundo, menos o americano" para robôs de segurança pública. Se em 87 Murphy era um cadete idealista em seu primeiro dia de serviço, dentro de uma polícia estafada e corrupta, aqui ele é um veterano ultra competente que quase perde o parceiro em uma cilada de um traficante de armas. Antes o projeto Robocop era de Bob Morton, um decadente, drogado e tarado executivo da OCP, aqui ele é do benevolente cientista Dennet Norton. Onde a morte de Murphy no original era uma brutal execução pela gangue do traficante Clarence Boddicker, aqui é um carro bomba do traficante de armas Antoine Vallon. Em 87, Murphy era tratado como produto por ser "só mais um tira morto" - em 2014, é com permissão de sua esposa que a Omnicorp o transforma em um ciborgue "para salvar a sua vida". Detalhes "pequenos", mas que mudam muito. 

1987: sujo, violento, utilitário e sombrio.
Muito disso custa ao filme seu impacto emocional e sua crítica social; ao reduzir o hedonismo e a corrupção da OCP, pinta a sede de lucro de seus representantes como positiva (para não mencionar a falta que faz alguém tão sádico, corrupto e egoísta quanto Dick Jones); A Detroit do novo filme não é nem de longe a distopia do original (e parece tão limpa, que sinceramente parece melhor que a Detroit real); A policia não é nem de longe tão sobrecarregada quanto no original (e o crime não é tão exagerado). No geral, tudo parece... bom demais. Nada dos assaltos exagerados e da violência gráfica do original - mas ao mesmo tempo, a ação é mais exagerada; como exemplo, onde em 1987 Murphy é humilhado por um ED-209, aqui ele quase derrota quatro deles.

Romance Cibernético: aqui, Murphy mantém a família; fora
o corpo, ao final ele perde nada. 
O foco emocional dado a Murphy e a relação dele com a esposa e o filho podam a critica a perda de humanidade dos policias, que tanto marcam as políticas de "dureza com o crime", seguindo a tradição de obras como Jin Roh, Tropa de Elite e até mesmo o pastiche que é Duro de Matar: como a estratégia de usar violência para retribuir a violência social mina a capacidade de empatia e socialização dos homens e mulheres reduzidos a uma arma nesse conflito. Coisa que é ainda mais prejudicada por um final feliz forçado. No original Murphy perde tudo; a vida, a família, as emoções, sua humanidade, para virar o policial "perfeito". Ele não é mais uma pessoa, mas sim "um produto"; aqui, ao fim das contas ele perde nada para passar de um super tira para um... hiper tira - todas as suas perdas são consertadas uma a uma, salvo as partes orgânicas perdidas.

uma das cenas excelentes que o novo copia muito mal


E nisso cenas fortíssimas são perdidas. Não digo que o remake tenha a obrigação de recriá-las - fosse isso, não teria mesmo razão de ser - mas há um claro esforço de tentá-lo na obra de Padilha. E são todas pálidas imitações do original, mesmo onde o impacto visual é mais forte - como na gráfica cena onde é revelado a Murphy o que sobrou do seu corpo. Em particular, sofrem cenas como a dolorosa visita de Robocop a sua antiga casa; o excelente tiroteio na refinaria de coca, que no original termina com a catártica surra em Clarence Boddicker, e especialmente a revelação da quarta diretriz e "Dick, você está demitido", aqui substituídas por uma pulseirinha que impede robôs de atacarem e... superar o programa via força de vontade. As tentativas de emulação são visíveis - e todas carecem do Gravitas emocional do filme de Verhoeven.

Mais emotivo, o Murphy de Kinnaman paradoxalmente expressa menos que o de Weller.
Vallon: insonso e descartável.
Boddicker: Sádico e memorável
Carentes também são os personagens: embora seja muito mais "emotivo" que a versão de Peter Weller, o Murphy de Joel Kinnaman expressa muito menos o sofrimento de quem perdeu tudo; o afável executivo de Michael Keaton carece de momentos memoráveis como os do Dick Jones de Ronny Cox; embora simpático e crível, o Dr. Norton de Gary Oldman parece deslocado em uma obra como Robocop, fazendo do filme uma trama sobre "a luta política o bondoso cientista que quer salvar vidas, contra o malvado empresário que quer usar um homem morto para vender armas", ao invés da crítica ao capitalismo selvagem do original  - e não tem nada do humor escandaloso do Bob Morton de Miguel Ferrer. Mas o ponto pior dos personagens é o traficante de armas Antoine Vallon (Patrick Garrow), imensamente apagado e desprovido de qualquer fala memorável, Vallon é um fantasma se comparado ao genial, sádico e detestável Clarice Boddicker de Kurtwood Smith.


O RoboCop de Padilha é, como seu personagem título, um produto - e pouco além disso. É visualmente impressionante, tem uma trilha sonora agradável - e que preserva o tema de Basil Poledouris, mas não tem nada de notável além disso. Seu feito mais relevante é tentar discutir as questões de vigilância, violação de privacidade e o uso de remotos para "segurança" e "defesa", ligando-se bem com pautas atuais - mas infelizmente, nenhum desses temas é abordados com competência (e de alguma maneira com menos sutileza que no original - em um certo ponto o personagem de Samuel L Jackson diz que a discussão é sobre usar drones e espionar cidadãos americanos, e quem não aprova essas ações tem que parar de reclamar). No geral, um filme que não tem porque existir - e que como Tropa de Elite, será facilmente mal entendido como uma defesa de uma polícia violenta e desumana.


Recomendação: fiquem com o original. Ainda é mais relevante e atual que a releitura.

Nota: 5/10.



2 comentários:

  1. Amigão, faz uma crítica sem comparar com o original, sua crítica ficou péssima, não pode se comparar ao original, afinal vc está fazendo a crítica do filme de 2014 e não do de 1987,

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    1. É impossível falar desse filme sem se falar no original - ainda mais se tratando do quanto ele falha em tudo que o original faz com perfeição. Dizer que não se pode comparar com o original é como dizer que não se pode comparar uma adaptação com o material de origem - é dizer que a fonte é irrelevante. Desprovido do original, o Robocop novo nada mais é que um filme ruim, superficial e "bonitinho". Nada mais.

      Remakes não existem em um vácuo - e neste caso em especial, o filme não teria motivo de ser não fosse a existência do original. Tratar ele como um filme "solo" é um desrespeito, e é dar muito mais crédito que ele merece; não fosse o peso do nome Robocop e o impacto do original, esse projeto jamais existiria, e num cenário bizarro onde existisse, chamando se algo como "cybercop" ou coisa parecida, ainda seria apenas um filme comercial com uma fina pátina de intelectualidade, onde sua fonte tinha uma crítica mordaz combinada com nenhuma vergonha da violência (enquanto esse faz tudo que pode para escondê-la, e o máximo de sátira que realiza é algo já batido, e sem ressonância alguma; Bill O'Reilly é uma sátira de Bill O'Reilly melhor que Pat Novak o é).

      Antes fosse algo como Dredd ou o abismal Conan de 2012, que são releituras um material antes já explorado, mas não: Robocop não é uma adaptação de um livro, um quadrinho ou uma série; o material de origem do fiasco de Padilha É o filme de 1987 - e ainda por cima, ele nada faz para merecer ser tratado como algo além de uma mera reciclagem. Não compará-los seria como discorrer sobre o Duna de David Lynch sem falar do livro de Frank Herbert, ou Fúria de Titãs sem sequer mencionar Ray Harryhausen - é desrespeito, e é tratar a obra com uma independência que ela não tem.

      Enquanto o filme de Verhoeven usa de um filme "baixo" e "ordinário" (e justamente por isso os estúdios se vêm no direito de refazer o filme - sugira refilmarem Apocalipse Now, Cidadão Kane ou Casablanca - eu mencionaria Psicose, mas esse já fizeram) para discutir Reaganomics e a cultura de excessos dos anos 80, e o faz com a sutileza (e o impacto) de uma bigorna, este serve para levantar discussão de uma única questão: o comportamento carniceiro dos estúdios hollywoodianos com filmes que fizeram sucesso, reerguendo velhos títulos e despindo os de sua identidade em troca de lucro fácil - e essa é a pior parte: o fato que para muitos daqui pra frente, Robocop será essa coisa vazia; pela terceira vez, Robocop é mutilado para "vender melhor" - e nisso fica pior. Foi assim com as sequências, foi assim com as tentativas horrendas de levar Robocop para a TV (Salvo Robocop 2, que ainda mantinha parte do que fez o original ser bom, todas sem ninguém da equipe original), e é assim ainda mais gritantemente com o remake.

      Espero que minha posição quanto a esse tipo de refilmagem tenha ficado clara.

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