terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Condenado, mas não pelo principal

No último domingo, Jordan Russel Davis completaria dezenove anos - Não fosse um encontro fatídico em um posto de gasolina, transformado em tragédia por uma legislação absurda que premia a violência e agrava os conflitos raciais no sul dos EUA. Seu assassino foi condenado - mas não por mata-lo. 

Morto por ser negro ouvindo musica alta. 
Em novembro de 2012, o estudante Jordan Davis, de 17 anos estava com um grupo de amigos em um posto de gasolina, em Jacksonville, Florida; enquanto um deles fazia compras na loja de conveniência, Davis e os amigos foram abordados por Michael Dunn, um programador e empresário de então 45 anos, irritado com o volume (e o tipo) da música que os rapazes ouviam. Após discussão, Dunn retornou ao seu carro, pegou uma pistola 9mm do porta luvas, e disparou dez vezes contra o carro de Davis, matando o rapaz. Depois da altercação, Dunn foi com a noiva para um hotel, pediu uma pizza e alugou um filme, como se nada tivesse acontecido. 


Neste fim de semana, após 30 horas de deliberação por parte dos jurados, Dunn foi condenado pelo incidente: três penas por tentativa de homicídio em segundo grau, uma pena por disparar arma de fogo contra um veículo ocupado, mas... nenhuma condenação pelo seu crime maior: pela morte de Davis, Dunn teve o julgamento anulado por "irregularidades" - como o fato do juiz ter explicitamente dito que "não era para condenar Dunn se achassem que ele tinha o direito de se defender" (quando ele era o agressor) e uma confusão por parte do juri a respeito do crime: julgado por homicídio premeditado, membros do juri entenderam que não era o caso pois Dunn não tinha ido ao posto de gasolina com a intenção de matar Davis. 

Dunn: depois de matar um rapaz de 17 anos e disparar dez vezes contra um automóvel, não chamou a polícia, não falou da suposta arma com a noiva, e pediu uma pizza como se a situação fosse a mais normal do mundo - cartas escritas na prisão revelam que ele "queria ensinar uma lição" aqueles "marginais". 
Notem o problema: na compreensão do juri, a acusação era invalida porque não havia um planejamento prévio do crime, e para o juiz, Dunn teria o direito de "Stand your Ground", e não tinha obrigação de se retirar - até aí tudo bem, mas isso ignora que Dunn retornou ao carro para buscar uma arma (o que por si só já elimina a ideia de autodefesa), e que não há como alegar que não houve intenção de matar quando Dunn disparou repetidas vezes contra um carro ocupado. 

A defesa do programador alega que Dunn sentiu-se ameaçado pois "teria visto uma escopeta dentro do carro" - arma que nunca foi encontrada pela polícia. Ele não informou sua noiva da suposta arma, nem chamou a polícia a respeito do ocorrido. Ele também alega que Davis saiu do carro para ataca-lo, e que ele atirou em auto defesa - mas ninguém além dele viu o rapaz sair do carro, ou qualquer arma. E após ser baleado duas vezes, uma delas na aorta, Jordan Davis continuava dentro do carro, com a porta fechada, contradizendo a versão de Dunn - ou como foi mais grosso um promotor: 
So you're telling me that after you shot Jordan Davis in the aorta, he reached over and closed the door?" - Um promotor da Florida, dirigindo se a Michael Dunn

No aftermath do crime, as atenções cairam não sobre o assassino, mas sobre a vítima. Sim: no final de 2012, o foco do noticiário sobre o caso eram as supostas ligações criminosas de um dos amigos de Davis, que tinha uma passagem pela polícia por furtar um rádio e duas caixas de som. E sobre como "Thug Culture" estimulava a violência, como a música que eles ouviam era "musica de bandido", como ele se vestia como um marginal, e como quatro jovens negros em um carro é "ameaçador" - mas nem uma palavra sobre o homem que matou um rapaz de 17 anos, desarmado, e partiu para o hotel como se aquilo fosse a coisa mais normal do mundo. 
Até quando?

E para quem acha que não há um componente racial para o crime, há o que se some a sua certeza de que os quatro eram "certamente criminosos" (afinal, eram negros) e seu ódio intenso a "música de bandido", como define o Rap, em comprovar que Michael Dunn de fato é racista, e a morte de Jordan Davis é movida a racismo: as cartas que Dunn escreveu na prisão. Seguem excertos:

The fear is that we may get a predominately black jury and therefore, unlikely to get a favorable verdict. Sad, but that’s where this country is still at. The good news is that the surrounding counties are predominately white and Republican and supporters of gun rights.”
“The jail is full of blacks and they all act like thugs. This may sound a bit radical but if more people would arm themselves and kill these (expletive) idiots, when they’re threatening you, eventually they may take the hint and change their behavior.”
Em uma das cartas, ele afirma "não discriminar por raça", ao mesmo tempo que ressalta seu ódio pela cultura negra americana contemporânea (para uma medida de como isso "não é racista", considere a seguinte afirmação: "eu não tenho preconceito contra gaúchos, mas eu não tenho uso para certas culturas. Essa "cultura" de bombacha, chimarrão e "musica" que certos segmentos da sociedade migram para é intolerável", seria isso preconceito contra gaúchos, ou não? Agora leve em conta que a cultura "do gueto" é predominantemente negra):
“I’m not really prejudiced against race, but I have no use for certain cultures. This gangster-rap, ghetto talking thug ‘culture’ that certain segments of society flock to is intolerable.”
Na mesma carta, ele afirma que o curso de ação que ele tomou foi para "ensinar uma lição" nos amigos de Jordan Davis, para que eles "mudassem o comportamento". De maneira simples: ele admite que matou um rapaz para intimidar um grupo de jovens para que "agissem como gente".

Como bem colocou Tonyaa Weathersbee, da CNN, o julgamento de Dunn abre um precedente perigoso: a ideia de que, sim, um jovem negro desbocado é mais ameaçador do que um homem branco - do tipo que se chamaria de "cidadão de bem" - com uma arma de fogo, e que este tem o direito de abrir fogo "para se defender". "Alguém naquele juri viu Jordan Davis com uma arma que provavelmente nunca existiu, mas negou-se a ver as balas reais - dez ao todo - que Dunn disparou contra a SUV e contra o corpo de Davis, balas que deixaram Davis sangrando e morrendo no colo de seus amigos", escreveu. 

Renisha McBride: morta ao pedir ajuda. 
E como ressaltou Jarvis deBerry, do Nola.com, quando um homem negro mata outro negro, a comunidade negra como um todo espera que o assassino seja punido. Quando um negro mata um branco isso é usado como argumento de que os negros são uma ameaça - e em casos como este, em que um rapaz negro é morto por um branco? O que se sucede é uma onda de justificativas e a expectativa que se aceite o crime. Independente se a vítima era nova demais, não tinha ficha criminal, ou se era uma garota escapando de um acidente, se pede para que se considere o morto como uma ameaça, o autor não seja punido, e aquela morte tratada como "algo certo".

Enquanto isso no Brasil...
Um precedente que o Brasil conhece bem: afinal, esse é o país onde jovens ouvindo musica típica de comunidades carentes é causa de alarde e "sinal de degeneração moral"; em que esses mesmos jovens se reunirem em shoppings é "preparação para crimes", e em que "bandido bom é bandido morto" (exceto se o bandido for criminoso de colarinho branco, ou for filhinho de papai). Onde amarrar um moleque de rua que cometeu pequenos furtos é "justiça" - quem liga se um dos justiceiros tem passagem por estupro? O rapazote negro é B-a-n-d-i-d-o... 

Um triste veredito, para um crime triste - e que deve ressoar com muitos, e muitos casos por aí... O que mais espanta é que Dunn foi condenado por tudo, exceto matar o rapaz que ele matou. Ainda assim pode pegar até 75 anos de prisão - mas fica o estranho gosto que "você pode matar um rapaz negro, mas tem que terminar o serviço, se não é crime". Será que se os quatro tivessem morrido e não houvesse quem defendesse o morto, Dunn não seria solto da mesma maneira que George Zimmermann foi? Uma perspectiva assustadora - e bem plausível. 

As críticas ao veredito não agradaram a emissora conservadora Fox News, como demonstra o vídeo abaixo - e resta saber se, como George Zimmerman o foi por matar Trayvon Martin, Michael Dunn será alçado a herói da direita americana por matar um rapaz cujo único crime tenha sido - talvez - ser desbocado. Zimmerman  é tratado pelos conservadores americanos como um pobre injustiçado que livrou o mundo de um "marginal" terrível - de assassino de menores, passou a celebridade e mártir. Veremos se com Michael Dunn não acontecerá o mesmo. 


e para quem diz que racismo é coisa do passado... mais um vídeo, breve,sobre racismo e fox news..










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