terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

A imagem da barbárie

A imagem ao lado é emblemática do quão baixo estamos chegando como civilização. Um jovem negro, nu, preso a um poste por um cadeado de bicicleta, após ser espancado por uma gangue de "justiceiros de moto" - pouco mais que um linchamento. A imagem revoltante foi postada no facebook pela artista plástica Yvonne Bezzera de Melo, fundadora da ONG Projeto Uerê - que oferece serviços de educação para crianças com dificuldades causadas por traumas.

Na internet, a violência e a barbárie continua: mesmo sem saber quem era o rapaz da foto, internautas se sentiam no direito de dizer que se tratava "certamente" de um assaltante, ou que teriam sido assaltados por ele... E repetia-se o bordão, "bandido bom é bandido morto". 

Independente do rapaz ter cometido ou não crimes (e ao que parece, ele tem passagem por pequenos furtos), nada justifica tal coisa. Isso vai além de "impedir um crime": é humilhação pública, linchamento e "dar um exemplo" - e não para "bandidos" (até porque foi dado por bandidos - não importa se você se vê como justo, vigilantismo é crime, humilhar alguém publicamente é crime, e espancamento é crime), mas para "moleques de rua" e "gente escura". Se se tratava de um meliante, os três que o espancaram, despiram e prenderam ao poste poderiam tranquilamente detê-lo sem a humilhação e a brutalidade que demonstraram - e é de se questionar porque não permaneceram no local. 

Porém, para a sede de sangue dos cidadãos de bem, o que fizeram não foi "excesso", mas "frouxo". Não irei desta vez postar aqui os comentários - basta procurar qualquer postagem no facebook sobre o caso para que apareçam, não farei do meu blog espaço para discurso de ódio; Entre outras coisas, haviam cidadãos alegando que "faltou tacarem fogo"; "menos um dessa raça nojenta"; "não vi muito sangue, tinham que ter batido mais"; "tá com pena leva pra casa"; "tem que exterminar essa raça de assaltantes", entre outras; acusaram a artista plástica que registrou o fato de ser "amiga de bandido", de proteger assaltantes e traficantes; disseram "pra levar pra casa, pra ver o que achava quando essa raça estuprar a tua filha". 

Notem o uso de "raça" só nos excertos citados - se procurarem nos comentários dos posts de grandes jornais, verão mais. Haveria tal violência contra o rapaz, caso tratasse-se de um rapaz branco? Parece me duvidoso. Como comentou Yvonne: 

— Nos anos 80 existiam, na Zona Sul, gangues de rapazes que saiam à noite para bater em mendigos e em meninos de rua. Depois, isso parou porque houve certa redução da criminalidade. Se ele rouba, que prendam, mas não pode torturar no meio da rua — conclui. — Esse tipo de crime tem muito racismo, muito preconceito. Se fosse o contrário, ia ser um Deus nos acuda. “O branquinho amarrado no poste, coitadinho!”. O que está acontecendo é que a violência está criando o ódio da população. Eu entendo, ninguém quer ser esfaqueado andando no Aterro (do Flamengo), mas você tem leis, tem uma polícia. Não pode fazer justiça com as próprias mãos.
O racismo brasileiro já estava escancarado com a situação dos rolezinhos (com direito a tentativas de intimidação contra jovens "suspeitos" - leia se, de pele escura- e liminares autorizando shoppings a expulsar clientes com aparência "duvidosa"), assim como instruções explicitas da PM para abordar "jovens de pele parda ou negra", as piadas racistas e o pastor-deputado que disse que africanos eram amaldiçoados (mas não todos, pois tem brancos na Africa). Mas agora tem-se um caso que beira o ridículo. Custa me acreditar na realidade do caso. Parece-me absurdo demais, mas é real - e quase caricato. 

E é ainda mais caricato e preocupante ver o furor com que "cidadãos de bem" defendem essa enormidade. Novamente, não se trata de "defender bandido", e sim do absurdo que é tolerar espancamentos, humilhações e prisões sumárias, sem julgamento, sem defesa e sem evidência do crime. Não ocorre aos defensores de tal absurdo que eles - ou seus filhos - podem se ver na mira de vigilantes como estes; e menos ainda o fator maior, que ao fazer tais brutalidades e defendê-las, se tornam piores que o "bandido" que dizem estar levando a "justiça" (que nada tem de justiça, mas muito tem de vingança). Tem se uma ideia bizarra que violência é a solução para a violência urbana (algo como, minha casa está em chamas, vou buscar napalm), por mais que dados demonstrem o contrário (bastando comparar as taxas de homicídio do Brasil e dos EUA, com polícias ultra violentas, com a de países europeus e a do japão, onde a polícia raramente carrega armas de fogo).

Nem o Superman tem esse direito. Sabia que um dia
teria porque usar essa imagem. Tem mais aqui
Ou ainda pior, que a violência se torna correta por advir de um "cidadão de bem" ou da "polícia" (a não ser que tal violência seja te parar na Blitz, aí já é abuso!). Estar bem posicionado socialmente, ter reputação ilibada, ser um "homem de respeito", nada disso é desculpa para a brutalidade - que como Asimov escreveu e repito, é o último refúgio do incompetente. Se qualquer coisa, sua posição "ética, moral e de respeito" deveria fazer não que tivesse fosse "certo" agredir os indesejáveis; são esses autoproclamados "guardiões da retidão" que tem menos o direito de agirem como juri, juiz e executor. O que me preocupa realmente é que estejamos caminhando para uma sociedade que vê o sistema dos juízes de Dredd não como distopia, mas como algo utópico - uma polícia que mata com requintes de crueldade, sem processos, evidências ou qualquer jurisprudência.

Fico aqui com a pergunta... se bandido bom é bandido morto, isso significa que os justiceiros de moto devem ser mortos, ou como a vítima da agressão e humilhação era um menino de rua negro e culpado por pequenos furtos, eles podem? Já explorei as questões da injustiça penal em dois textos; me parece lamentavelmente que isso não é o bastante para saciar a sede de sangue dos "cidadãos de bem", tão parecidos com os republicanos americanos - que viram em George Zimmerman - o homem que baleou um rapaz de 16 anos no peito após receber ordens explicitas de "não fazer nada", porque ele parecia suspeito - um herói. Agora vêm em três bandidos anônimos um heroísmo inexistente, e na vítima, humilhada, despida e desarmada, uma efígie de todos os males do mundo.

Engraçado como um artigo do meu blog nerd agora se faz necessário... O culto ao vigilantismo logo vai resultar em termos por aí pretensos Rorschachs e Frank Castles, escalando ainda mais a violência e atacando quem julgam como "transgressores" - curiosamente, sempre jovens negros e pardos, de comunidades carentes, prejulgados como agressores e "bandidos" pelos verdadeiros criminosos. Bandido bom é bandido julgado e sentenciado dentro dos parâmetros da lei. Nada além disso.

E para notar o pensamento binário digno de Javért (para quem ou se era um homem de bem, ou um bandido) se joga todos os meliantes no mesmo balaio - antes que se soubesse quem era o rapaz, já se atribuía a ele (que tem passagens por pequenos furtos) ser um sequestrador, traficante, assaltante, vândalo e estuprador. Pois como se sabe, basta cometer um crime, e você passa a cometer todos os outros. Espera, eu disse cometer? Nahhh, todo mundo sabe que se nasce bandido ou "gente de bem", não se migra entre uma coisa e outra... 
Uma nota final, um ultimo caso cabal de preconceito.

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