Domingo, com certo atraso, eu escrevi sobre os terríveis eventos que se sucederam em Paris na última sexta-feira. Hoje, o assunto ainda é Paris - inevitável que tal enormidade não seja discutida exaustivamente. Mas o foco deste texto é outro aspecto: o ódio fomentado pelos eventos que sucederam.
Comecemos pelo óbvio: enquanto o fim de semana de fato foi marcado por demonstrações de solidariedade para com as vítimas, e o povo francês demonstrou, em grande parte, uma forte rejeição aos discursos de ódio, estes ganharam força. A islamofobia vive, e tem ganho força no discurso político oficial. Não são poucos os comentários culpando toda a comunidade islâmica pelos eventos, ou pintando-os todos como terroristas.
Da mesma maneira, a xenofobia ganhou força. A França fechou as fronteiras e a mobilidade entre os países europeus se vê ameaçada com a suspensão temporária do tratado de Schengen. A descoberta de um passaporte sírio entre os terroristas serviu de combustível para o argumento odioso de que os refugiados seriam “agentes infiltrados”. Entre os grupos mais conservadores, volta a pauta deportar os refugiados. Em várias cidades, mesquitas foram atacadas.
Entre os que se destacaram por este discurso simplista contra os refugiados no Brasil estavam o pastor Silas Malafaia, que de alguma maneira envolveu o PT na história, e o colunista da Veja Felipe Moura Brasil, que se atreveu a dar uma “explicação definitiva para o terrorismo”. Já nos EUA e na Europa, os mesmos partidos responsáveis por gerar o berço perfeito para o terrorismo quiseram oferecer soluções “finais”: deportar os refugiados, e invadir a Síria. O pré-candidato republicano Donald Trump ainda tentou usar da tragédia para defender o porte de armas.
Mas não é só de velhos ódios conservadores que o discurso de ódio pós Bataclan vive. Disfarçando seu discurso como “indignação pela falta de cobertura de outros atentados”, usuários de redes sociais desmereceram a tragédia. A pauta do fim de semana era “tá, mas e ‘x’”? Alguns dos casos usados como “prova” de que estariam ignorando outras tragédias haviam sido cobertos a exaustão - como o massacre na universidade de Garissa, no Quênia, em Abril, a chacina de Osasco, ou o incêndio na Boate Kiss, no ano passado. E em sua maioria, eram casos datados, pautas frias que não estavam mais no debate mais caloroso da esfera pública, ou que careciam de uma cobertura mais aprofundada devido a problemas que iam muito além de “falta de interesse”.
Um dos temas mais comuns foi a acusação de “indignação seletiva” por falarem de Paris mas não de Mariana - a cidade de Minas Gerais devastada pelo rompimento de represas da companhia de mineração Samarco. A indignação é compreensível. Mas vários dos comentários revoltados acusavam quem se compareceu com Paris de “racismo” e “complexo de colonizado”. Ao mesmo tempo, alegavam que não criticavam pessoas, “mas a mídia”.
A mentalidade ignora, claramente, que o evento parisiense é mais recente, e não sofre (infelizmente para o Rio Doce) dos mesmos entraves à cobertura jornalística que uma tragédia sem precedentes como a que ocorreu em Paris (não inocentado o jornalismo por não superar esses entraves. Mas há um número infinitamente maior de jornalistas em Paris do que em Mariana, ou no Quênia) - e que espalha ondas preocupantes sobre o globo. Da mesma maneira, os eventos não são comparáveis por um motivo simples: embora a ação da Samarco tenha sido sem dúvidas criminosa em sua negligência com a segurança e o ambiente, não houve uma ruptura deliberada da represa* - diferente de atentados organizados e premeditado visando causar o terror.
Latuff, novamente errando com a melhor das intenções: O terror não é "retribuição". |
Mas alguns foram além da mera revolta, e entraram de fato no ódio. Comentários como “Digo mais: foi pouco”, “das mortes que os franceses causaram ninguém fala nada” e “eles pediram isso” brotavam e desapareciam das redes sociais. Alguns comentaristas, tentando se passar por peritos, acharam que a pauta era o ataque a revista Charlie Hebdo, em janeiro; outros, trataram de inocentar o Estado Islâmico e jogar a culpa “única e exclusivamente” nos EUA, nas potências ocidentais ou na França. Caso da charge de Carlos Latuff ao lado - que pinta o EI como ‘agente da retribuição”.
Outros ainda acusaram o governo francês de “demonizando o Estado Islâmico” e alguns chamaram os oito terroristas de “combatentes da liberdade” e “heróis contra o imperialismo”. Tentando se opor a islamofobia crescente, defendem um grupo que mata primariamente muçulmanos, pintam radicais como não sendo responsáveis por seus atos, e fomentam o discurso de que “muçulmano = terrorista”.
Contrariando a lógica simplista que assola os dois lados da política, o terrorismo não é “uma reação dos povos oprimidos ao imperialismo”, e nem ocorre “porque eles nos odeiam por que nos odeiam”. Existem causas longas e complexas, assim como há um fator importante de ódio naturalizado e da ideia de que ações violentas contra alvos não combatentes podem pressionar estados a tomarem as ações que grupos radicais querem. No caso do Estado Islâmico, no entanto, há de se levar em conta que nada difere o grupo da KKK ou da infame Aum Shinrikyo. São extremistas religiosos convictos da retidão de suas ações. A escolha do Bataclan como alvo não foi ‘uma reação ao imperialismo’, mas como afirma o próprio grupo, porque o teatro era "onde centenas de infiéis se reuniam em uma festa de prostituição e devassidão".
Vivemos em uma época bizarra. A violência como solução para conflitos fracassou - é de sua natureza ser incapaz de resolver algo de forma duradoura. Mas na alvorada do século XXI, a violência se naturalizou e passou a ser pintada como “justa”. O discurso justificador - válido em muitos casos, mas de forma alguma neste - de que “a revolta do oprimido não deve ser confundida com a violência do opressor” não pode servir de desculpa para mortes. Não há nada de heróico no que o Estado Islâmico fez. Mas há uma abundância de pessoas que parecem achar que há, ou que devam ser eximidos de culpa.
Este é o “admirável mundo novo” que se estende diante de nós após Paris: um mundo em que o ódio e a violência são vistos como uma forma deturpada de justiça, como se os crimes de gerações e administrações passadas pudessem ser vingados com a morte de civis que “mereceram” e os crimes dos “vingadores” pudessem ser lavados no sangue de outros “da gente dele”.
Irônico que certas pessoas, para se opor a guerra, defendam quem começa outra guerra. E estranho que um dos discursos mais apropriados para os belicosos em todo o globo venha de um programa de TV - ostensivamente, infantil.
*Isso obviamente não exime a Samarco e a Vale de culpa - mas chamá-las de “terroristas” é banalizar o termo terrorismo, e atribuir malícia ao que é facilmente explicado por ganância e estupidez.
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