segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Paris e o ódio

Em uma charge, o desdém pelas vítimas de Paris, disfarçado
de "critica a falta de compaixão com a Síria". Paris não foi
"um dedinho machucado" - tal comparação é tão cínica
quanto o vídeo propaganda isralense no ano passado, pintando
as mortes em Gaza como "um peteleco no nariz".
Domingo, com certo atraso, eu escrevi sobre os terríveis eventos que se sucederam em Paris na última sexta-feira. Hoje, o assunto ainda é Paris - inevitável que tal enormidade não seja discutida exaustivamente. Mas o foco deste texto é outro aspecto: o ódio fomentado pelos eventos que sucederam.

Comecemos pelo óbvio: enquanto o fim de semana de fato foi marcado por demonstrações de solidariedade para com as vítimas, e o povo francês demonstrou, em grande parte, uma forte rejeição aos discursos de ódio, estes ganharam força. A islamofobia vive, e tem ganho força no discurso político oficial. Não são poucos os comentários culpando toda a comunidade islâmica pelos eventos, ou pintando-os todos como terroristas.

Da mesma maneira, a xenofobia ganhou força. A França fechou as fronteiras e a mobilidade entre os países europeus se vê ameaçada com a suspensão temporária do tratado de Schengen. A descoberta de um passaporte sírio entre os terroristas serviu de combustível para o argumento odioso de que os refugiados seriam “agentes infiltrados”. Entre os grupos mais conservadores, volta a pauta deportar os refugiados. Em várias cidades, mesquitas foram atacadas.

Entre os que se destacaram por este discurso simplista contra os refugiados no Brasil estavam o pastor Silas Malafaia, que de alguma maneira envolveu o PT na história, e o colunista da Veja Felipe Moura Brasil, que se atreveu a dar uma “explicação definitiva para o terrorismo”. Já nos EUA e na Europa, os mesmos partidos responsáveis por gerar o berço perfeito para o terrorismo quiseram oferecer soluções “finais”: deportar os refugiados, e invadir a Síria. O pré-candidato republicano Donald Trump ainda tentou usar da tragédia para defender o porte de armas.

Mas não é só de velhos ódios conservadores que o discurso de ódio pós Bataclan vive. Disfarçando seu discurso como “indignação pela falta de cobertura de outros atentados”, usuários de redes sociais desmereceram a tragédia. A pauta do fim de semana era “tá, mas e ‘x’”? Alguns dos casos usados como “prova” de que estariam ignorando outras tragédias haviam sido cobertos a exaustão - como o massacre na universidade de Garissa, no Quênia, em Abril, a chacina de Osasco, ou o incêndio na Boate Kiss, no ano passado. E em sua maioria, eram casos datados, pautas frias que não estavam mais no debate mais caloroso da esfera pública,  ou que careciam de uma cobertura mais aprofundada devido a problemas que iam muito além de “falta de interesse”.

Um dos temas mais comuns foi a acusação de “indignação seletiva” por falarem de Paris mas não de Mariana -  a cidade de Minas Gerais devastada pelo rompimento de represas da companhia de mineração Samarco. A indignação é compreensível.  Mas vários dos comentários revoltados acusavam quem se compareceu com Paris de “racismo” e “complexo de colonizado”. Ao mesmo tempo, alegavam que não criticavam pessoas, “mas a mídia”.

A mentalidade ignora, claramente, que o evento parisiense é mais recente, e não sofre (infelizmente para o Rio Doce) dos mesmos entraves à cobertura jornalística que uma tragédia sem precedentes como a que ocorreu em Paris (não inocentado o jornalismo por não superar esses entraves. Mas há um número infinitamente maior de jornalistas em Paris do que em Mariana, ou no Quênia) - e que espalha ondas preocupantes sobre o globo. Da mesma maneira, os eventos não são comparáveis por um motivo simples: embora a ação da Samarco tenha sido sem dúvidas criminosa em sua negligência com a segurança e o ambiente,  não houve uma ruptura deliberada da represa* - diferente de atentados organizados e premeditado visando causar o terror.

Latuff, novamente errando com a melhor das intenções:
O terror não é "retribuição". 
Mas alguns foram além da mera revolta, e entraram de fato no ódio. Comentários como “Digo mais: foi pouco”, “das mortes que os franceses causaram ninguém fala nada” e “eles pediram isso” brotavam e desapareciam das redes sociais. Alguns comentaristas, tentando se passar por peritos, acharam que a pauta era o ataque a revista Charlie Hebdo, em janeiro; outros, trataram de inocentar o Estado Islâmico e jogar a culpa “única e exclusivamente” nos EUA, nas potências ocidentais ou na França. Caso da charge de Carlos Latuff ao lado - que pinta o EI como ‘agente da retribuição”.  

Outros ainda acusaram o governo francês de “demonizando o Estado Islâmico” e alguns chamaram os oito terroristas de “combatentes da liberdade” e “heróis contra o imperialismo”. Tentando se opor a islamofobia crescente, defendem um grupo que mata primariamente muçulmanos, pintam radicais como não sendo responsáveis por seus atos, e fomentam o discurso de que “muçulmano = terrorista”.

Contrariando a lógica simplista que assola os dois lados da política, o terrorismo não é “uma reação dos povos oprimidos ao imperialismo”, e nem ocorre “porque eles nos odeiam por que nos odeiam”. Existem causas longas e complexas, assim como há um fator importante de ódio naturalizado e da ideia de que ações violentas contra alvos não combatentes podem pressionar estados a tomarem as ações que grupos radicais querem. No caso do Estado Islâmico, no entanto, há de se levar em conta que nada difere o grupo da KKK ou da infame Aum Shinrikyo. São extremistas religiosos convictos da retidão de suas ações. A escolha do Bataclan como alvo não foi ‘uma reação ao imperialismo’, mas como afirma o próprio grupo, porque o teatro era "onde centenas de infiéis se reuniam em uma festa de prostituição e devassidão".


Vivemos em uma época bizarra. A violência como solução para conflitos fracassou - é de sua natureza ser incapaz de resolver algo de forma duradoura. Mas na alvorada do século XXI, a violência se naturalizou e passou a ser pintada como “justa”. O discurso justificador - válido em muitos casos, mas de forma alguma neste - de que “a revolta do oprimido não deve ser confundida com a violência do opressor” não pode servir de desculpa para mortes. Não há nada de heróico no que o Estado Islâmico fez. Mas há uma abundância de pessoas que parecem achar que há, ou que devam ser eximidos de culpa.

Este é o “admirável mundo novo” que se estende diante de nós após Paris: um mundo em que o ódio e a violência são vistos como uma forma deturpada de justiça, como se os crimes de gerações e administrações passadas pudessem ser vingados com a morte de civis que “mereceram” e os crimes dos “vingadores” pudessem ser lavados no sangue de outros “da gente dele”.

Irônico que certas pessoas, para se opor a guerra, defendam quem começa outra guerra. E estranho que um dos discursos mais apropriados para os belicosos em todo o globo venha de um programa de TV - ostensivamente, infantil. 

*Isso obviamente não exime a Samarco e a Vale de culpa - mas chamá-las de “terroristas” é banalizar o termo terrorismo, e atribuir malícia ao que é facilmente explicado por ganância e estupidez.

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