quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Os critérios e os riscos da cobertura de terrorismo

Uma visão simplista. O recorte existe, mas não é tão claro -
e nem são os outros conflitos ignorados.
Há muita gente que reclama que a imprensa não dá uma linha sobre *insiraatentadoaqui*, enquanto compartilha reportagem sobre o mesmo atentado. A coerência começa a se perder aí: quando se usa a cobertura de algo para alegar que a cobertura não existe. Da mesma maneira, alegam que a cobertura imediata de um evento inesperado significa a total ignorância de outros eventos do gênero (um dos quais, o massacre de Garissa, ocorreu em abril, e foi a época coberto com exaustão por agências de notícias e noticiários internacionais). 

Mas a narrativa vai além, alegando que um atentado no centro de uma região de conflito com acesso limitado da imprensa por questões logísticas e de risco não ter exatamente a mesma cobertura que sete atentados coordenados em uma das maiores cidades do globo, com jornalistas 24 horas e em um país que não é marcado por violência deste tipo é uma coisa só: a imprensa é "racista e quer ver negros morrerem". E o desconhecimento popular sobre não é resultado do combo de -local distante e vago, portanto não familiar- com fadiga de compaixão por ouvir histórias de violência sobre a África a tal ponto que se tornou rotina: é porque as pessoas são todas "racistas e querem ver negro morrer". 

Quantas pessoas vocês conhecem que foram para Paris? Quantas imagens de Paris fazem parte do imaginário popular? O quanto sabem sobre a Nigéria? Sobre Bagdá? Todo mundo conhece alguém que foi para paris, ou que sonha em visitar a Cidade Luz. A Nigéria, no entanto? Para os olhos da maior parte da população, é tão familiar quanto o Uzbequistão, a Geórgia ou o Laos. Não é por racismo: nos atamos ao que nos é familiar. O desconhecido é vago demais para gerar um laço emocional, e nossa psicologia, infelizmente, dificulta em muito a compreensão do que é alheio a nossa experiência. Da mesma maneira existem fatores geopolíticos que pesam na decisão: o quão influente é a Nigéria? Sim, é uma tragédia. Mas que impacto isso tem no resto do mundo? Que impacto tem uma série de ataques na capital da França? São questões diferentes. E que vão influenciar em quanto tempo e espaço pode ser disposto para cada história. 

Outro fator ignorado: estados tem um poder considerável para obstruir ou facilitar o trabalho da imprensa. Nos estados mais vitimados pelo terrorismo e pela violência política, o trabalho jornalístico se encontra ameaçado por milicias, cartéis e terroristas, mas também pela ação de governos com pouco interesse em "jornalismo honesto" sobre o que ocorre em seu país. Corrupção, prisões arbitrárias, confiscos, desaparecimentos e agressões são eventos recorrentes com jornalistas nestes países. Indo cobrir a guerra civil na Síria, em 2012, o jornalista brasileiro Kléster Cavalcanti foi preso e torturado, sob alegações falsas. Essas ações, assim como 57% das mortes de jornalistas no país nos últimos 23 anos (segundo o Comitê para a Proteção de Jornalistas), vieram não de grupos terroristas, mas de agentes do governo de Basshar Al Assad. A cobertura jornalista nesses locais exige assumir riscos cada vez maiores. Sem presença in loco o máximo que pode ser feito é isto: análise, e notas com dados oficiais e postagens online. 

Essa narrativa reducionista parece algo que sairia de uma caricatura maliciosa de um esquerdista, mas não é. É uma narrativa torpe recorrente por certos ativistas, coletivos e páginas de esquerda que parecem nunca ter estudado nada sobre como o mundo funciona, se prendendo a uma narrativa pronta e simplória de "opressor e oprimido". Os mesmos que repetidas vezes pintam o terrorismo como sendo "a reação do oprimido contra o imperialismo". E bizarramente, as mesmas pessoas que hoje tentam reescrever a história dizendo que a imprensa não deu uma única linha sobre as duas guerras mais noticiadas da história: Iraque e Afeganistão. Que não cobriu em nada o caos na Síria - uma história continuamente reportada apesar a impossibilidade de se conseguir um jornalista no front seguramente. 

Não: é tudo simplesmente "o racismo", só isso. Fadiga de Compaixão, familiaridade, proximidade, critérios de noticiabilidade, logística, tempo, imprevisibilidade, relevância, importância geopolítica, proximidade cultural, nada disso importa: é só racismo e a luta do oprimido contra o opressor. Só isso. Um simples mundo maniqueísta que o único critério de noticiabilidade é "tem gente branca? não? joga fora". Um mundo em que toda história pode ser coberta 100%, e que não há motivo para fazer uma seleção de pautas, de intensidade, de tempo de cobertura, de relevância: é malicia mesmo. 

Temos 42 conflitos armados em 2015. Isto descontando eventos inesperados e imprevisíveis (como eventos de violência extrema em locais onde eles não são recorrentes). Não há como esperar que um conflito em que a obtenção de informação é bloqueada por barreiras linguísticas, a infraestrutura de transmissão de informação é precária, e o risco para os jornalistas envolvidos nessa cobertura é elevado (a Nigéria é o segundo país da Africa subsaariana onde a morte de jornalistas é tratada com mais impunidade, segundo o Comitê para a Proteção de Jornalistas) seja tão coberto quanto um evento cuja cobertura enfrenta menos obstáculos. O caso específico da Síria é um de risco extremo: em 2014, 19 jornalistas foram assassinados no país. Tampouco há como cobrir todos estes eventos: não existem correspondentes de guerra para tanto, o jornalista internacional e o correspondente de guerra são cada vez mais uma espécie em extinção, sendo substituídos por "citizen journalists" e fontes oficiais com frequência cada vez maior, e essas fontes são enviesadas, limitadas e não raro, pouco confiáveis - basta ver a frequência com a qual fotos de conflitos são postadas por citizen journalists em redes sociais como pertencendo a contextos, locais e épocas distintas de sua origem, para pressionar uma reação da imprensa. 

Um fator importante a ser lembrado na cobertura de guerra - como se aprendeu bem com a cobertura 24hrs do Iraque e do Afeganistão - é que os eventos de uma guerra são "tédio pontuado com medo" e ações de rotina, como nota Robin Brown, devido a cobertura ser muito mais rápida do que os eventos. O que preenche a imprensa não com reportagem (que rapidamente se torna repetitiva) mas com especulação e análise - e o trabalho da mídia molda como o conflito é percebido e como os governos respondem a situação. Isso, por sua vez, fortemente reduziu a capacidade destes governos em definir como seus cidadãos enxergam a guerra. Mesmo a analise pode alcançar um ponto em que, para as audiências e para os jornalistas, se torna cansativa e enfadonha: há um limite para quantas vezes o público pode ouvir as mesmas coisas sendo ditas a respeito do que deve ser feito, quem são as partes e quais são as implicações. E este limite de tolerância parece ter se reduzido com o advento das redes sociais (nota minha). O resultado para o nosso caso em especial, da cobertura precária de certos conflitos? Reduz se o quanto o público está disposto a ouvir sobre um conflito. E o interesse deste público em buscar informações sobre.  

Criticas devem ser bem pensadas. Critérios de noticiabilidade existem, e alegar que tudo se resume em racismo e preconceito vai além da ignorância: é simplificar e desmerecer o trabalho de jornalistas que fazem o possível para cobrir a quantidade imensa de histórias que chegam todos os dias, e ignora que simplesmente é impossível cobrir igualmente todas as tragédias. É cruel, mas algumas pesam mais - talvez porque suas ramificações vão além de um conflito local. Os atentados de Paris foram um prenúncio do que está por vir, e deflagaram uma onda de xenofobia pelo Globo. O que ocorreu na Nigéria foi um capitulo de uma história que tende a se manter presa a Nigéria. Garissa, por mais horrível que tenha sido, é uma questão Quêniana. O Boko Haram e a milicia Al-Shabab são grupos locais. Suas ações são tragédias e atrocidades, sim. Mas que afetam os habitantes destes países, e que tem implicações no resto do globo. O EI? Se demonstrou além de fronteiras. Isso preocupa, isso causa medo. Isso quebra os padrões de ação do grupo. Isso é extremamente noticiável - e não só porque "afetou gente branca e o seu sonho de turismo". 


Obviamente que isso não isenta a imprensa de suas falhas recorrentes, de sua conivência com grupos de interesse, ou o poder que audiência e financiamento tem em determinar suas pautas. Ou sequer que certos grupos de imprensa (mas de forma alguma toda a imprensa, como tem sido sugerido) sejam abertamente racistas e xenófobos em sua decisão de pauta. Menos ainda que não haja muito a ser repensado em como essa seleção é feita, e no framing dessas histórias (o que é outra questão, não ligada tanto a o que é coberto, mas como é coberto). Mas reduzir tudo a uma narrativa simplista de "preconceito e falta de empatia" beira o absurdo.

Sim: há um problema grave com o trabalho da imprensa. Um problema que vai além de suas limitações operacionais, e que incluí os impactos do ciclo de noticias 24hrs, os interesses do público e dos acionistas, a fadiga de compaixão das audiências - fartas de ouvirem as mesmas histórias, a ponto de se tornarem apáticas - e o sucateamento das equipes de reportagem. Isso tudo vai mundo além de mero "são negros/árabes/mexicanos, quem liga". Tem muito a mudar, e muito a melhorar. Mas criar uma narrativa maniqueísta que atribuí os problemas a malícia não vai fazer isso. 

Quanto a maneira em que a mídia cobre terrorismo, encerro com uma recomendação de literatura básica: Framing Terrorism: The News Media, the Government and the Public. É uma excelente análise das relações que cercam o jornalismo sobre terrorismo, e de onde vem as colocações de Robin Brown acima. 

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