segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Quando medidas bem intencionadas são causa de conflito...

Algumas vezes, problemas de atitude de uns poucos destroem bons planos. Outras vezes, a sensação de certas pessoas - em geral privilegiadas - de serem "prejudicadas" por um determinado programa ou campanha resultam em discursos exagerados e temerosos a respeito dos "parasitas sociais", dos "vagabundos" e de como "as pessoas de bem" estão sendo prejudicadas por isso.

Esse tipo de reação venal é bem comum quanto a programas de inclusão social, em especial aqui no Brasil e nos EUA - quem nunca ouviu a estapafúrdia teoria de que "pobres teriam mais filhos para ganhar mais bolsa família", aparentada com o igualmente incompreensível alegação comum nos EUA de que famílias de baixa renda "inventariam doenças" para ganhar mais benefícios e não ter que trabalhar. Como se R$ 32 a mais por mês em uma família cuja renda já é insuficiente de alguma maneira compensaria o peso adicional de mais uma boca para alimentar.



São "críticas" que variam de dizer que essas medidas seriam inócuas e não combateriam as causas da miséria - fato: não é função de seguridade social combater as causas, e sim garantir que os excluídos não simplesmente morram de fome - até afirmações como a do comentarista conservador americano Kurt Schilchter, de que programas sociais são em essência uma violação das funções do Estado, que em seu ver deve se ocupar única e exclusivamente de travar guerras.

A resistência conservadora a programas sociais nos EUA é lendária: basta olhar as reações ao National Healthcare Act - vulgo o "Obamacare", apelido dado pelos republicanos a reforma no precário sistema de saúde pública da super potência. Enquanto o vizinho Canadá tem um sistema de saúde pública de altíssima qualidade, da mesma maneira que grande parte da União Européia, nos EUA o que impera é a dependência dos planos de Saúde privados, que excluem clientes por "condições pre-existentes" e não raro se mostram dispostos a deixar um cliente fiel morrer no leito hospitalar por que "ele não pagou o suficiente". Enquanto isso, alegando defender a saúde da população, Republicanos ameaçam cortar os programas de MediCare e MedicAid, reduzindo ainda mais o acesso a saúde de grande parte da população, e alguns dos assim chamados "libertários" defendem que saúde não é um direito, e portanto oferecer cobertura pública de saúde é autoritário e tornaria os médicos "escravos de vagabundos".

Já nas idas do Brasil, embora 70% dos beneficiários do Bolsa Família estejam empregados ou a procura de emprego - índice igual ao dos não beneficiados - ainda impera a lógica de que os participantes do programa são "vagabundos". Conforme pesquisas, não existem evidências de que o programa desestimule a procura por emprego - mas ainda assim, revistas como a Veja, "formadores de opinião" como Datena e Prates e partidos como PR, DEM e PSDB continuam a afirmar que a existência do bolsa família "passa a mensagem errada" e estimula a população de baixa renda a "vadiar" e ter "um monte de filhos". Para fins de informação, o valor máximo do Bolsa Família é R$ 306,00 - que mamata não? Ainda assim para muitos isso é um atroz roubo dos recursos públicos "para comprar votos". Mais de uma vez vi pessoas reclamarem de "porque não dão esse dinheiro pra o cidadão de bem?", como se de alguma maneira essa fosse uma "bolsa vagabundo".

Não que não haja a argumentação de "bolsa vagabundo", vide o ódio que se tem do auxílio reclusão, um benefício legal existente desde 1999 - mas que de alguma maneira é culpa da Dilma - e que se destina aos familiares de presos que tenham contribuído com o INSS. É uma medida para garantir que os filhos de presidiários não sejam punidos pelos crimes dos pais, e não sejam forçados a criminalidade também. Mas para a classe média brasileira, é "bolsa preso" e é dinheiro "pago para ser bandido", uma cabal falta de compreensão da realidade.

Ou o igualmente violento ataque a redução da tarifa de energia elétrica anunciado pelo governo federal, devido ao aumento de "espantosos" 4% no preço da gasolina - o primeiro reajuste acima da inflação que os combustíveis tem desde 2004. De alguma maneira, os 4% da gasolina viraram um peso maior que os 17% de redução (32% para indústria) na energia elétrica. E de alguma maneira, o fato que 97% da população e 100% da industria usam energia elétrica é irrelevante, devido a um aumento de 4% que afeta 25% da população. Para citar um conhecido meu, "Isso aí só beneficia quem não tem carro, é só para comprar voto de vagabundo" - como se não ter carro fosse um crime.

Mas a irascibilidade da alegação de estar sendo prejudicado ao não receber benefícios mínimos não se restringe a medidas políticas - vejam o caso de Brent Michael, um colecionador de brinquedos que em 2011 teve uma ideia peculiar para integrar a fanbase de sua linha favorita - Transformers: um evento que chamou de TransformAway, uma medida simples para estimular a caridade inter-fãs. A ideia era apenas "doar um boneco que você não quer mais para outro colecionador", sem esperar nada em troca, e como idealizador do projeto, Brent assumiu a função de arranjar os contatos entre os colecionadores, ver quem queria o que as pessoas tinham para doar, e ETC. A primeira edição foi um sucesso - o problema veio em 2012, quando ele decidiu repetir a dose.

Desta vez, o TransformAway virou uma interminável fonte de Stress para o estudante de Criminologia que apenas queria incentivar seus colegas de Hobby a "partilharem a felicidade". Ao final do ano, a situação chegou a tal ponto que as contas de e-mail e do facebook associadas ao TransformAway tiveram que ser desativadas. O motivo? Ameaças de morte partindo de pessoas que se sentiram lesadas por não receber nada em troca (quando a proposta era "sem esperar nada em troca"), ou por não receberem tudo o que queriam - alguns, até reclamaram de boca cheia, tendo recebido doações sem ter enviado nada em troca, e ainda assim se sentiram lesados.

Isoladamente, esses e outros casos (tais como as resistências igualmente agressivas ao PLC 122, ou as medidas constantes de Republicanos de podar direitos civis de minorias e os direitos reprodutivos da mulher para defender as liberdades individuais) já são problemáticos - mas colocados em conjunto revelam um problema maior: a incapacidade de pensar no quadro geral, e só olhar "como isso me beneficia?". Por essa lógica, se eu não estou entre os beneficiados da proposta, ela é ruim e perversa - lógica que estarrecedoramente já vi ser aplicada a obrigatoriedade de acesso para cadeirantes, a existência de vagas para idosos, e até a dar a preferência para ambulâncias, viaturas e caminhões de bombeiros no trânsito.

Afinal, se eu tenho um plano de saúde, porque deveria aceitar que o governo pague para esses "vagabundos"? Eles que paguem um, não é? Porque eu que sou andante deveria por uma rampa na minha loja, ou ter que aguentar obras no correio para colocar rampas e banheiro para deficientes? Não tenho nada com isso! Não é minha casa pegando fogo, não tenho que abrir passagem para os bombeiros. Uma lógica comum, incentivada e estimulada por certos grupos como maneira de garantir sua perpetuação no topo.

A lógica do todos contra todos e "o que eu ganho com isso" é uma favorita da Veja e da Fox News - e justamente por causa desse discurso que o povo não se levanta e aceita coisas como um mínimo de R$ 678,00 - ou vê como absurdo um mínimo de US$ 9/hora -  e engole a desculpa de que esse valor minusculo é para "preservar a industria e o mercado". Afinal, eu não ganho um mínimo, porque deveria me importar? Talvez se tivesse que sustentar irmãos e filhos com R$ 678,00 por mês entenderia - ou melhor, se trabalhasse dois empregos para ganhar R$ 1.366,00 antes de impostos, e ser chamado de vagabundo apesar disso. Não importa quanto você leu isso em livros da Ayn Rand, em artigos da Veja ou Mises.org ou em entrevistas do Donald Trump e do Eike Batista, ou quantas vezes ouviu isso na Fox News ou da boca de Glenn Beck, os ricos não estão sendo prejudicados - se qualquer coisa tem recebido mais e mais benefícios, a ponto de sugerirem que pagarem 35% de imposto acima do segundo milhão de renda é "absurdo" e "a maior tributação que os EUA já viram" - para comparação, nos anos 50, o que era cobrado de imposto sobre o primeiro milhão de renda para frente era 95% - e egoísmo não é uma virtude, nem nunca deveria ser tratado como tal.









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