sábado, 2 de novembro de 2013

O preconceito, o ônibus, e eu.

Em um ônibus precisamente como este,
eu senti na pele o que é ser discriminado.
E não, não é algo que "se leva numa boa
e se deixa para lá". 
Essa semana senti na pele o preconceito: por virtude de meu status como estrangeiro, eu (juntamente com três cidadãos obviamente estrangeiros - duas árabes e um terceiro que presumo ser do leste europeu) fui grosseiramente enxotado para fora de um ônibus na linha 2A; aos gritos e empurrões, três dinamarqueses de seus 20 e poucos anos nos impediram de embarcar no coletivo. Pensei que fosse talvez pelo excesso de gente, mas não impediam os loiros dinamarqueses de entrar. E quando eu proferi a ingenua frase - "I don't understand" - veio a resposta derradeira e chocante:

Get out! Get out! This bus is danes only! Get out!, seguida de berros e o que eu presumo serem insultos em dinamarquês. Um cruel choque de realidade, um soco na boca do estômago; Não importa o quão "bela" e ordeira seja a Dinamarca,a xenofobia é uma realidade mundial - seja em "utopias" como os países nórdicos, nos BRICs ou em rincões do terceiro mundo, parece que o "outro" - não o individuo, mas "aquele que está fora do grupo - é digno de desconfiança, maus-tratos e violência.

Mês passado, um colega meu foi vítima do mesmo tipo de discriminação, mas em uma forma menos escandalosa - entrando em um órgão governamental, foi acossado por um segurança informando o que a porta principal é para "europeus" e que "gente do terceiro mundo" deveria entrar pelos fundos - e que "aqui, ao contrário do seu país, temos regras e horários". Tudo em um tom agressivo e condescendente, segundo meu colega - como se se dirigissem à um animal ou uma criança pequena.


Um dos mais populares argumentos para se negar a existência de racismo e xenofobia é a velha alegação, de que o preconceito "é contra pobre, não é pela cor/por nacionalidade". Mas isso cai por terra com uma análise cursória do preconceito sofrido por quem é "diferente". Preconceito não vê carteira: o fato é que a ganancia pode fazer o preconceituoso deixar de lado suas pré-concepções para lucrar um pouquinho. E isso não impede coisas como Oprah Winfrey ser vitima de racismo, apesar de todo o seu vasto poder financeiro.


Quando eu cursava biologia marinha, um colega meu foi profundamente discriminado em um hipermercado - questionado do porque de parecer tão ressentido após as compras de uma festa, ele deu uma resposta simples: "o tempo todo que estivemos no supermercado, tinha um funcionário me seguindo", como se para "garantir que ele não roubasse nada". Parece nada, mas raramente esses casos menos violentos são exceção. 

Uma das maiores demonstrações
de preconceito sistematizado -
tabela de identificação de negros
"criminosos ou insanos"

E vem acompanhados do estigma pesado dos esteriótipos: negros são preguiçosos, criminosos e "querem nossas mulheres". Homossexuais são pervertidos, drogados e pedófilos. Muçulmanos são terroristas que querem destruir nossa civilização. Judeus são gananciosos, mentirosos e controlam o mundo. Latinos são preguiçosos, burros e só pensam em sexo. Melhor não dar emprego para esse ex presidiário pois senão ele vai me roubar, pois sabe como são (ignorando que sem emprego, óbvio que ele voltará para o crime) - e por aí vai. 


Pode parecer raro que alguém diga abertamente que acha que "mendigo devia virar comida de peixe", mas o clichê de mendigo como bêbado e drogado é um lugar comum - e falso. Poucos são os que expressam desejos violentos contra muçulmanos, mas convencionou-se dizer que são terroristas, assassinos, incapazes de conviver em sociedade. Diz se que o racismo é coisa do passado, mas quando um rapaz negro é baleado sem motivo nos EUA, se verifica o passado do garoto morto - pois é óbvio, é negro, deve ser parte de gangue, certo? -, enquanto seu assassino sai ileso - e em uma demonstração do preconceito naturalizado, a jornalista negra da Fox News ainda completa que "o único motivo pelo qual não se achou uma arma, é porque não procuraram direito".

É fácil para quem não lida constantemente com isso - como é, admito, o meu caso - dizer que preconceito é uma coisa do passado, que minorias deveriam simplesmente "deixar pra lá", e ignorar, porque "sempre vai acontecer". É realmente fácil. Mas quando se vê a realidade das coisas - quando se lida com a policia atirando em alguém que está tentando em entrar no seu próprio carro; quando um rapaz vai preso por fazer compras com seu próprio dinheiro; quando a morte de rapazes pobres da periferia é "regular demais" para as notícias, e quando um menino de dez anos é chamado de terrorista por rezar em árabe, a situação é grave demais para agir como se "fossem casos isolados". 

Não muito diferente da oposição ao casamento LGBT,
direitos da mulher, religiões minoritárias, ateus
ou a entrada de imigrantes islâmicos no país.
Eu não sei se o que aconteceu comigo foi uma exceção, se tamanho grau de preconceito com estrangeiros é uma raridade na sociedade dinamarquesa e eu simplesmente dei azar. O que posso dizer é que ao menos para aqueles grupos tradicionalmente discriminados - imigrantes de países africanos e islâmicos, árabes e negros - é perceptível sob um olhar mais atencioso o quão não bem vindos eles são. Um professor da universidade de Aarhus levantou-me a seguinte questão: não fosse a legislação progressista e igualitária, como seria a Dinamarca? Se não houvessem leis contra o preconceito, como seria o Brasil? E se não existe preconceito... porque lutar contra leis que o punam?

A resposta para nenhuma dessas perguntas é agradável, e revelam a podre verdade quanto a intolerância. Fácil dizer que ela sempre estará lá - e talvez sempre esteja -, mas isso nada mais é do que uma desculpa cínica para negar-se a lutar contra, deixar o preconceito vencer e ficar calado. Ou pior: é uma maneira de não admitir que está defendendo o lado opressor nesse debate - como fazem aqueles que, frente ao seu "comediante" favorito sendo processado após humilhar em rede nacional a maior doadora de leite do país, alegam que a vítima está oprimindo o agressor

Quem sabe o preconceito seja algo que todos devam experimentar uma vez na vida - para mudarem de perspectiva, verem que não é "só opinião" quando se diz que ""tem se razão em não querer contratar negro" - coisa que já ouvi muito - e não é algo "inofensivo" quando se sai dizendo no congresso nacional que "homossexuais querem abusar de nossas crianças" (por sinal uma repetição do líbelo de sangue contra judeus). Como diria Isaac Asimov... "O problema é que esteriótipos raciais, prejudiciais a todos exceto homens brancos de ascendência norte-europeia, eram completamente aceitos, e de fato, pouco notados naqueles dias de apenas quarenta anos atrás [1930] (exceto talvez por membros dos grupos por eles vitimizados)". É fácil negar o preconceito, quando não é você que apanha com ele. 

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