quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Trolls, livre expressão e repercussões.

Em setembro deste ano, o jornal NewYork Post foi alvo de criticas por usuários anônimos após publicar um exposeé do paramédico Timothy Dluhos - mais conhecido no twitter pela alcunha de "Bad Lieutenant". Usando uma foto de Hitler com imagem de perfil, Dluhos postava diatribes racistas quase que diariamente, juntamente com comentários sexistas e homofóbicos, fotos de armas e ameaças. Após a exposição, Dluhos se demitiu para escapar de um processo administrativo, alegando ser "perseguido e hostilizado", e apoiadores lançaram uma série de ataques contra a repórter que o "desmascarou".

O maior troll da internet - ou era
Essa não foi a unica, e nem a ultima vez que a divulgação de um "troll" notório atraiu legiões anônimas em defesa do acusado, muitos alegando que seus crimes "não são de verdade". Em março de 2012, o site Gawker.com se envolveu em uma "guerra particular" com o Reddit. O motivo: a exposição de Michael "violentacrez" Brutsch, moderador de dois subreddits, os infames /creepeshots/ (fotos "intimas" retiradas sem o conhecimento da vítima) e /jailbait/ (com fotos retiradas dos perfis online de adolescentes). No entender dos usuarios do site, revelar publicamente a identidade de violentacrez seria um ataque a liberdade de expressão, muito mais grave que os frequentes discursos racistas, violentos, sexistas e em prol da pedofilia de Brusch.

Em julho, o chefe de polícia de Gilberton, Pennsilvânia Mark Kessler virou noticia na internet ao postar vídeos fazendo ameaças a membros de alto escalão da administração Obama, onde atirava em fotos de palhaços que serviam de proxies para John Kerry, Nancy Pelosi e o presidente Obama, dizia que iria matá-los, e que descarregar pentes inteiros era "o que deveria ser feito" com "liberais". Depois de virar "famoso" na web e ser alvo de críticas, Kessler passou a dizer que "estava sendo atacado e perseguido". 

Em março de 2012, os editores do blog Silvio Koerich foram presos na Operação Intolerância da polícia federal. O blog acumulou 69.729 denúncias por crimes de ódio. Segundo a polícia federal,  "As mensagens faziam apologia à violência, sobretudo contra mulheres, negros, homossexuais, nordestinos e judeus, além da incitação do abuso sexual de menores. Os criminosos também apoiaram o massacre de crianças praticado por um atirador em uma escola na cidade do Rio de Janeiro em 2011". Além disso, o nome do blog em si era criminoso, assumindo o nome de um usuário que havia criticado as declarações preconceituosas dos dois em fórums feministas. 


Esse tipo de "humor"
Este ano o Testosterona Blog perdeu o apoio financeiro da rede MTV depois de meses sendo criticado por conteúdo misógino (listado aqui). Entre outros problemas, o blog era conhecido por divulgar vídeos tratando estupro como um misto de piada e "direito do homem", compartilhar material do acima citado, promover a violência contra a mulher, e tratar espancamentos e homicidios conjugais como algo "engraçado". Caso similar ocorreu com a(s) página(s) Lobo da Insanidade, repetidamente removida do facebook por violações dos termos de uso, a série de páginas "de humor" tinham na sua "piada" central o imperativo "ESTUPRE".

É que abundava nas páginas citadas
Não é de hoje que o direito a livre expressão tem sido mal entendido. Não raro, ignora-se a parte que diz "vedado o anonimato", atropela-se a expressão alheia, considera-se que livre expressão significa estar imune a repercussões, veem se críticas como sendo censura, ataques como "opinião", e contradição como perseguição. Ao mesmo tempo, age-se como se "a internet" fosse alguma realidade alternativa, e as ofensas ali feitas não "valessem". O meme todo mundo conhece: a internet é "uma terra sem lei", onde todas as ofensas, calúnias e difamações, toda misoginia, racismo, elitismo e intolerância são permitidas e até incentivadas. A esquiva também: "é só minha opinião" e "estão tentando censurar minha liberdade expressão". "Não alimentem os trolls" se mistura com "no mundo real eu não faço isso" no estranho balé de trollagem e apaziguamento.

Vale lembrar que quando se trata de "opiniões ofensivas",
pessoas tem direitos, não idéias ou ações - ou seja: não se
abre possibilidade de alguém ser punido por difamar "uma
ideia" - como querem religiosos fanáticos ao punir por
difamar "o islã" ou "a fé cristã"
De fato, a liberdade de expressão é um direito essencial, mas isso não deve servir de prerrogativa para abusos: a livre expressão não é desculpa para ofensas, e menos ainda para calúnias, ataques e violações de direitos alheios. Não a toa existem leis cobrindo tais formas de expressão; falem o quanto quiser em "liberdade de opinião", mas acusar - sem provas - alguém de "defender a pedofilia", como foi feito com um certo deputado, postar imagens promovendo xenofobia, racismo, estupro e insinuando que "negro é tudo bandido", como feito pela página da PMFEM do Rio, pedir que se torturem presos, ou os usem para experimentos, ou chamar quem come carne de "carnista desprovido de empatia" e insinuar que cientistas são nazistas por fazer experimentos com animais (enquanto alguns dos tão empáticos vegans pedem pra que sejam feitos em pobres - errr... bandido¹) ainda são ofensas dignas de critica - quando não tipificam crimes. Ninguém deve ser punido por expressão, mas o resultado dessa expressão é outra história. Essa liberdade não incorre em esperar que ninguém reaja, critique, ou em casos extremos, levante queixas legais. Claro, o direito a crítica deve sempre permanecer - mas crítica não é inventar coisas, ou insultar, ameaçar e difamar.

O choro do racista exposto.
A expressão contrária ainda é livre expressâo - ou seja: se você defende a livre expressão irrestrita, você logicamente tem que defender o direito de outros de criticarem-no por sua expressão. Quando confrontado, Dluhos caiu no choro, se sentindo lesado pela repercusão de seus atos - e ignorou completamente que o problema não era a exposição, e sim o que ele fazia. Brusch foi demitido por defender e divulgar conteúdo que beirava a pornografia infantil e promover racismo e homofobia, entre outros motivos pelo qual à época se demonstrou completamente não arrependido. Redditors julgaram "injusto" que ele fosse punido pelo que disse "no mundo virtual". No caso de Dluhos, o departamento de bombeiros de Nova Iorque investigar um notório racista que pregava violência contra minorias foi tratado por internautas "preocupados" como "patrulhamento ideológico", quando não era "ditadura do politicamente correto". Em ambos os casos alegava-se que "a persona online" não interferia no mundo real.

Alguns chegaram ao ponto de comparar a "violação de privacidade" do autor de fotos intimas de meninas e o neonazista do twitter com "expor a identidade de lideres de movimentos civis". O que me levanta a pergunta: violentacrez nunca respeitou o direito a privacidade das garotas que fotografava ou postava online, porque teria ele o direito a privacidade? E que movimento civil ele representa, para considerarem sua exposição como "um ataque a liberdades civis"? O dos pedófilos homofóbicos e racistas? Dluhos é o legitimo representante dos neonazistas oprimidos? Seria o Testosterona blog um defensor do machista oprimido e agredido pela "opressão feminista"? O militarismo do policial Kessler seria a defesa do "gunnut" contra a estranha "violência" de quem quer uma sociedade mais igualitária e menos violenta?

Isso, só isso.
É um tanto óbvio que não são brancos racistas, homofóbicos e machistas quem tem sofrido com violência nos tempos de hoje - do contrário, não teríamos advogados acusando meninas de treze anos de mentirem sobre estupro, estudantes de jornalismo informados a usar a porta "de gente de país de terceiro mundo" e deputados alegando que o que os movimentos de direitos LGBT querem é "molestar crianças³", enquanto outro deputado diz que negros africanos são amaldiçoados, (mas nem todos, pois tem brancos na África).

Pode-se dizer que a internet hoje é como o cangaço ou o faroeste - uma terra sem lei. Mas fica a pergunta se a ordem nesses locais foi estabelecida com a presença da lei, ou a lei se estabeleceu como resultado da ordem? Não estamos mais nos tempos das Usenets, onde apenas um punhado de especialistas tinham acesso a internet, e qualquer coisa valia. Quanto mais usuários se fazem presentes, mais surgem formas de regular o que está acontecendo - e isso não é necessariamente ruim. Claro - não pode se abrir espaço para leis autoritárias, como o que ocorre no oriente médio, mas há de se coibir práticas criminosas, como discursos de ódio, pornografia infantil e difamações. Teme-se a mão pesada da lei, mas se ignora o fato que, evitando abusos, a lei há de ser sensata. Sim, temos inúmeros casos de artistas e políticos buscando tirar conteúdo da Web - sem sucesso, por não terem base legal para isso²; Não é com difamação e ameaças que isso será mudado - esse método só tende a dar a quem quer esconder algo os meios legais para isso. 

Não estou advogando por censura aqui, e sim por responsabilidade - correr adoidado espalhando falsidades e atrocidades é pedir pelo fim da liberdade na internet, da mesma maneira que redes sociais ignorarem o abuso constante é pedir para que os usuários ofendidos busquem a lei para ampara-los. O ideal, de fato, é que não hajam leis, exceto para extremos como pedofilia, calúnias organizadas e ameaças concretas de violência. E como qualquer pessoa sensata me oponho à existência de "órgãos de policiamento da internet" - qualquer queixa cabe a parte ou partes ofendidas, amigos e simpatizantes, e salvo exceções, serem resolvidas junto a empresa ou grupo que faz  o hosting do material ofensivo; a existência de órgãos e instituições para esse fim leva a corrupção e autoritarismo. Denúncias e queixas pessoais podem ser abusadas, mas não ao mesmo nível que "uma polícia da internet" que fique fiscalizando tudo que foi dito a priori

Claro que censurar o direito a críticas, opiniões políticas, divulgação de fatos (leia: não de fraudes), registro de irregularidades e de abusos por partes das autoridades, questionamentos da ordem pública e opiniões negativas sobre os "poderosos" e os famosos é um absurdo - mas o que defendo aqui é que isso não é motivo pelo qual deva se ignorar os males causados por opiniões em prol do ódio contra minorias, 

O que acontece, com ou sem leis. 
De forma curiosa, aqueles que mais clamam pela liberdade de expressão quando criticados são os que  mais cerceiam a liberdade alheia. Esta semana, um post do Deputado Federal Jean Wyllys criticando a conduta antidemocrática da bancada ruralista - que incluiu uma agressão física a outro deputado do PSOL - foi alvo de repetidas denúncias e removido do facebook, enquanto páginas e mais páginas pregando violência contra o deputado carioca se mantém no ar. Os grandes empresários são fortes defensores da livre expressão quando os interessa - e fortes opositores da mesma quando se dá na forma de denúncias e protestos contra os mesmos. o direito a Expressão muitas vezes está diretamente ligado ao dinheiro - chegando a extremos como o caso Citizens United, no qual a Suprema Corte dos EUA considerou que dinheiro e financiamento de campanha são igual a expressão.

Os defensores da livre expressão quanto ao discurso de ódio, e que acham que não critica e réplica são violações do seu direito de falar o que querem sem consequência. 

isso foi censurado...
Mais cedo neste mês, a página "Meu professor de história desistiu de mim", de critica e ocasional escárnio da ultra conservadora "Meu professor de história mentiu pra mim" foi removida. As fotos do ator gay Jesse Jackman com seu marido, Dirk Caber, foram removidas sem aviso e Jackman foi suspenso da rede social. A rede não ofereceu explicações para o ocorrido, e simplesmente colocou a imagem de volta no ar alguns dias depois - sem explicações. Jackman comentou o seguinte sobre o imbróglio: 
"[I have] received multiple public death threats after posting this photo, endured countless homophobic slurs, and received dozens upon dozens of hate-filled messages, and yet Facebook did nothing about those disgusting comments, choosing to censor love instead of hate."

Mas isso não.
Aquilo que o facebook supostamente proíbe - a realidade
é outra. 
Isso quando o argumento da livre expressão não é usado em resposta a exclusão, ou a moderação em um forum online, ou ao banimento de usuários problemáticos. Não poucas vezes, apesar dos insultos diretos ao usuário excludente, o excluído age como se ser amigo online fosse seu direito - e as vezes, veem se defesas dessa mentalidade (que parece estar relacionada as falácias sociais nerd, particularmente a que diz que nunca se excluí alguém, caso contrário você é o problema). No facebook, usuários com contas falsas - em si uma violação dos termos de uso - reclamam de moderadores "desrespeitando seus direitos" ao deletar ofensas, ameaças e calúnias, imagens pornográficas e violentas, spams e "trollagens" assumidas; todas violações dos termos de uso que eles "aceitaram", aparentemente sem ler.

O ponto que quero chegar é simples: sua expressão é livre - o estado não vai te impedir de dizer algo - mas isso não quer dizer que esse direito atropele todas as regras de convivência, especialmente aquelas do espaço onde você se encontra. Você não é imune a repercussões de seus atos, ou declarações, não importa o quanto diga que é "só minha opinião" ou "é só uma piada". Ser sua opinião não quer dizer que ela não é preconceituosa, intolerante e ofensiva, assim como o fato de ser uma piada não diminui a ofensa - dependendo da piada, aumenta. Ainda mais coisas como, enfrentando criticas por comentários racistas, perguntar quantas bananas o interlocutor quer pra ficar quieto. 

Você não tem direito algum de ser amigo de alguém, e ninguém tem obrigação de se manter seu amigo, especialmente quando você continuamente ofende essa pessoa, seu grupo social, ideologia, ou etnia. Por último: se vai defender a liberdade de expressão irrestrita... não reclame das críticas. Afinal, elas nada mais são do que o livre exercício da expressão. Sejam consistentes, ao invés de hipocritamente tentarem censurar quem os crítica - na base da violência, muitas vezes, como se vê dos defensores da livre expressão irrestrita quando se trata, por exemplo, de minorias, movimentos anti-capital, ou manifestações "que incomodem". Porque expressão contra o Status Quo já é vandalismo. Da mesma maneira, redes sociais e webhosts tem a obrigação de dar respostas condizentes as queixas prestadas - e não meramente atender umas por terem "maior volume" enquanto deixa de lado queixas contra conteúdo explicitamente ofensivo. Sejamos coerentes. 

P.S.: fazer humor "politicamente incorreto" não te faz revolucionário e inovador - se qualquer coisa, lhe marca como retrogrado; todas as piadas racistas, machistas, anti-semitas e homofóbicas, centrada em velhos clichês e esteriótipos de "comediantes" como Danilo Gentili e Rafinha Bastos já eram velhas quando meu pai estava na escola. Chamar negro de macaco, judeu de sovina e mulher de puta não é inovador. É coisa que deveria estar batida desde que negros e mulheres tiveram seus direitos garantidos.

¹Não querendo atacar o ponto de vista vegano, ou sequer o site Consciencia.blog.br - que usa esse termo com frequência - mas sim ressaltar que é de fato aceitável que pessoas se ofendam com isso. Estou plenamente ciente de que o Consciencia.blog.br é contra a experimentação em humanos, mas não foram poucos os defensores dos animais que vi defendendo essa excrecência recentemente. 

²O resultado usual dessas tentativas de esconder podres, fotos embaraçosas e denúncias é aumentar a dispersão dessas informações - o chamado "Efeito Streisand", em "homenagem" a cantora Barbra Streisand, que em 2003 tentou barrar fotos de sua mansão em Malibu, 

³Depois dessa ofensa de classe, Jair Bolsonaro agora está alegando que a BBC e Stephen Fry estão difamando ele e distorcendo a sua fala, que de homofóbica não teria nada - apesar de ser uma cópia quase verbatim do líbelo de sangue contra os judeus (exceto que com sêmen? líbelo de sêmen?). A fala específica foi : “Eles querem que os heterossexuais continuem gerando crianças, para que essas crianças se transformem em gays e lésbicas para satisfazê-los sexualmente no futuro”

Um comentário:

  1. ótima compilação de casos. e toca exatamente no ponto sobre que as pessoas tendem a confundir sobre liberdade de expressão. afinal, se temos que assumir responsabilidades por nossas ações, porque não pelas nossas expressões? 'liberdade de expressão' não é irrestrita ou incondicional.

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