quarta-feira, 24 de julho de 2013

A falta de classe médica

Salário de R$ 10 mil agora é trabalho escravo, dizem
estudantes de medicina. O das outras profissões é o que então?
Depois de meses e meses criticando as intenções do Governo Federal para "importar" médicos estrangeiros - e dando atenção apenas para a vinda de médicos cubanos - agora a classe médica brasileira virou sua ira para outras duas medidas de Brasília: o projeto "Mais Médicos" - que obriga estudantes de medicina a atuarem por dois anos no Sistema Único de Saúde antes de obterem o diploma - e os vetos da presidente à alguns itens da lei do Ato Médico, classificadas como "traição".

Ao mesmo tempo em que criticam a falta de investimentos no SUS, e alegam que "medicina não se faz só com médico", os médicos do Brasil parecem empenhados em garantir que se mantenha de forma permanente a carência de pessoal no setor público. Enquanto outras categorias convivem historicamente com condições precárias de trabalho, salários abaixo do esperado, incertezas e uma jornada de trabalho excessiva, nenhuma demonstra tamanha rejeição pelo setor público.

E talvez por isso que seja risível a declaração do presidente da Sociedade Brasileira de Clinica Médica, Antônio Carlos Lopes, de que está é "uma classe que visa, acima de tudo, o apoio ao próximo, a assistência humanística e olha a profissão sob as vistas do amor ao próximo".Se seria este o caso, porque tamanha relutância em atuar no setor público? Certo que as condições muitas vezes são péssimas - mas não vemos professores abandonando em massa a rede pública por causa das escolas caindo aos pedaços.

Enquanto isso abunda o preconceito contra os médicos cubanos
Enquanto nossos profissionais da saúde parecem fugir do SUS, temos médicos estrangeiros e brasileiros lidando com condições piores em países de terceiro mundo - para não mencionar os esforços constantes ao redor do globo em zonas de guerra. De fato não se faz medicina só com o médico - mas também não adianta investir na estrutura sem quem faça o serviço, antes de qualquer coisa. Esse pequeno problema na argumentação dos órgãos da classe médica foi muito bem apontada pelo secretário do Ministério da Saúde, Mozart Sales:

"O Ministério da Saúde vai reformar e ampliar 17 mil unidades de saúde e vai construir seis mil novas unidades de saúde para melhorar as condições de infraestrutura, para garantir que os médicos tenham condições adequadas para o seu trabalho. Esse é um esforço que tem que acontecer. Agora, não adianta ter infraestrutura, ou colocar isso como condição inicial, se nós não tivermos o médico. O médico é um profissional fundamental".

Então digam, qual é o problema real para atacar o Mais Médicos? Pois somente a falta de condições não parece ser. Se são as condições ruins e as "condições de trabalho escravo", como alega o doutor Miguel Srougi e seu subalterno, Cesar Câmara - o médico que cobra R$ 450 por consulta, mas diz que só não largou o trabalho particular para ir pro SUS porque o Mais Médicos "é só uma bolsa" -, porque motivo estariam médicos - admitidamente! - se inscrevendo no programa com a intenção de desistir para atrasar a vinda dos profissionais estrangeiros?

Uma pequena fala do Doutor Srougi expõe o verdadeiro problema:

“Tampouco vale a pena discorrer sobre os médicos portugueses e espanhóis. Criados com padrão de vida inatingível para a maioria dos brasileiros, nunca se adaptariam aos rincões abandonados e carentes da nação. Teriam que praticar em condições desprovidas de dignidade e sem chance de propiciar vida honrada para si e seus familiares.” - Doutor Miguel Srougi
Ao falar em "vida honrada" e que os médicos europeus jamais se adaptariam aos "rincões abandonados e carentes da nação", Srougi acaba por dizer muito mais do que planejava. Seu discurso revela um elitismo incomensurável de alguém que não se disporia a ir aos "rincões" pela falta de "vida honrada". Leia: Não há como se levar o meu estilo de vida em um lugar desses, jamais que um médico deveria aceitar trabalhar em um lugar onde ele viveria essa vida plebeia. Mas Srougi não para aí:

“Ademais, dificilmente receberíamos profissionais competentes, prósperos em seus países. Sem um exame de competência, para cá viriam muitos médicos desqualificados, desconfio que até alguns insanos ou foragidos.”
Essa talvez seja a fala mais cruel e desmedida deste debate. Pior do que as alegações de que os médicos cubanos sejam "incompetentes" e que sua formação seria "horrível" - sendo que o país tem, segundo a OMS, o melhor atendimento do mundo em saúde pública - Srougi agora sugere pior: que os médicos estrangeiros dispostos a vir atender a saúde pública no Brasil seriam "insanos ou foragidos". Passou de uma crítica a medida para uma tentativa de gerar medo e hostilidade contra os médicos estrangeiros - realmente, lhes parece ser uma questão de "condições de trabalho"? 
Médicos afirmam não haver falta de profissionais, mas os números demonstram a concentração nos estados mais ricos e luxuosos. 

Ou seria um problema de corporativismo? Medo de perder clientes para suas caríssimas clínicas caso o SUS passe a atender como deveria, e de que seja perdido o "luxo" da profissão conforme os médicos parem de ser tratados como semideuses? Já temos o velho problema da exigência arrogante de médicos e advogados de que sejam chamados de "doutor" sem que tenham doutorado - e a petulância de alguns profissionais dessas categorias quando doutores acadêmicos são tratados pelo seu título devido, como se este fosse exclusividade das duas. Imagina então faze-los trabalhar para o "povão"?

E sobre a medicina cubana, direto de uma revista americana da área de saúde: 
Segundo a New England Journal of Medicine, “o sistema de saúde cubano parece irreal. Há muitos médicos. Todo mundo tem um médico de família. Tudo é gratuito, totalmente gratuito. Apesar do fato de que Cuba dispõe de recursos limitados, seu sistema de saúde resolveu problemas que o nosso [dos EUA] não conseguiu resolver ainda. Cuba dispõe agora do dobro de médicos por habitante do que os EUA”. http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/a-reacao-do-cfm-contra-a-vinda-dos-medicos-cubanos
Encerrando: sinceramente, se tivesse a perspectiva obrigatória de dois anos de emprego recebendo R$ 10 mil logo após sair da faculdade... eu estaria fazendo festa, e não reclamando. Saibam que enquanto reclamam de R$ 10 mil, jornalistas convivem com um piso de R$ 1.535 aqui em Santa Catarina. E lidamos com condições que raramente são as ideais. Só digo isso.


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