quarta-feira, 5 de março de 2014

Por sua opinião, nós lhe mandaremos a Crimeia

Na manhã desta terça-feira, Abby Martin, âncora do canal de TV RT, saiu um pouco do script na sua cobertura da crise Ucraniana. Antes de encerrar a transmissão do seu programa, Breaking the Set, ela expressou sua insatisfação com as ações do governo russo, no que ela chamou explicitamente de "ocupação militar". 

Eis o discurso de Martin:

“Antes que eu encerre o programa, eu queria dizer algo do meu coração sobre a atual crise política na Ucrânia, e a ocupação russa da Crimeia. Só porque eu trabalho aqui, na RT, não quer dizer que eu não tenha independência editorial. E eu não posso dizer o bastante o quanto eu sou contra qualquer intervenção militar nos afazeres de nações soberanas. O que a Russia fez é errado. 
Eu admito que não sei o quanto deveria sobre a história da Ucrânia ou as dinâmicas culturais da região. Mas o que eu sei é que intervenção militar nunca é a resposta. E eu não vou sentar aqui e fazer apologia ou defender agressão militar. Tudo que podemos fazer agora é esperar por um resultado pacífico para uma situação terrível, e prevenir outra Guerra Fria entre múltiplas superpotências. Até lá, eu continuarei a contar a verdade como eu a vejo. 
Só um problema para o lado da jornalista, e um que é um velho conhecido de muitos profissionais na área:  ao fazer isso ela foi contra os interesses dos chefes. E quem são os chefes? Neste caso, o governo russo. A reação que se seguiu pode ter vindo por ordem do Kremlin, ou pode ter sido da emissora, não se sabe, mas... Como "recompensa" pela audácia de dizer o que pensa, Martin recebeu uma "proposta" ousada: ser enviada para conhecer a realidade da situação do "epicentro da estória". 

Como declarou a emissora: 
Contrariando a opinião popular, RT não espanca seus jornalistas até a submissão, e eles estão livres para expressarem suas próprias opiniões, não só particularmente, como no ar. Esse é o caso do comentário de Abby quanto a Ucrânia.
Nós respeitamos as visões dela, e as visões de todos nossos jornalistas, apresentadores e anfitriões de nossos programas,  e não haverá nenhuma reprimenda contra a senhorita Martin. 
Em seus comentários, a senhorita Martin também notou que ela não possui conhecimento profundo da realidade da situação na Crimeia. Portanto, nós mandaremos ela para a Crimeia para dá-la a oportunidade de formar sua opinião do epicentro da estória. 
Por um lado, essa é uma ótima proposta para um jornalista, especialmente alguém com um foco voltado para política internacional - mas no contexto do evento, isso foi mais um caso de "você pode expressar sua opinião, da linha de frente".  Martin recusou o convite - que fim essa história vai ter, ainda não se sabe; ela pode ser pressionada a ir para a Crimeia, ou quando chegar a época de renovar o contrato, ela pode ser despedida. Uma triste realidade.


E que não é exclusividade da RT, ou de jornais mantidos por estados. Em 2003, a então repórter da MSNBC, Ashleigh Banfield criticou a cobertura dada a guerra do Iraque, e o comportamento de certos apresentadores "patrióticos", durante uma palestra na Kansas State University. A opinião não agradou a Universal - e em resposta, por dez meses Banfield ficou sem um escritório na emissora. Quando recebeu um escritório novo,  este era  um armário. E durante dezessete meses, Banfield esteve presa a um contrato que não poderia largar, proibida contratualmente de procurar outro emprego. Não é a única, e a tática de "segurar" desafetos nas redações (quando estes tem nome demais para serem sumariamente demitidos) para que não vão até o concorrente é bem comum. 

Por si só, o caso de Abby Martin já é polêmico. Como parte do cenário maior (e com literatura farta - indicações ao fim do texto!), é representativo de como a pauta dos jornais, rádios e televisões está sujeita a interferência dos patrocinadores. Quem trabalhou na área sabe: quantas pautas não foram barradas pois não se enquadravam "no projeto editorial"? Quantas outras não entram porque é interesse dos patrocinadores? Jornalismo é um jogo de interesses. Seja mantido por estados, empresas ou ONGs, sempre há interesses - políticos, econômicos ou ideológicos - por trás de qualquer cobertura jornalística. As vezes abertamente, outras na surdina, e em alguns casos a interferência é maior - como o da RT, mantida por um estado bem autoritário. 

E os colegas de imprensa... alguém se dispõe a contar casos em que isso foi claro, que algo não entrou porque "não é o enquadramento que cabe a esse jornal"?

Para conhecer mais sobre essas relações:

Dunaway, J. (2013). Media Ownership and Story Tone in Campaign News. American Politics Research 41(1):24-53.  

McChesney, R. (2003). The Problem of Journalism: A Political Economic Contribution to an Explanation of the Crisis in Contemporary US Journalism. Journalism Studies 4(3):299-329.  

 Upshaw, J.; Chernov, G. and Koranda, D. (2007). Telling More than News: Commercial Influence in Local Television Stations. Electronic News 1(2):67-87.  

Stetka, V. (2012). From Multinationals to Business Tycoons: Media Ownership and Journalistic Autonomy in Central and Eastern Europe. The International Journal of Press/Politics. 17(4):433-456

Storr, J. (2013). Carribean Journalism’s Media Economy: Advancing Democracy and the Common Good? The International Communication Gazette. 







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