quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Morre Campos; Perde a democracia

Perdemos um grande homem - de maneira súbita e inesperada, o candidato do PSB para a presidência da República, Eduardo Campos, faleceu em um chocante acidente aéreo, em Santos. Uma perda para todo o país - quer fosse a intenção de voto nele ou não. Um político experiente, de coragem e inteligência, um homem integro, e que muito fez pelo país quando Ministro da Ciência e Tecnologia - e com essa morte, a democracia brasileira muito perde. Perde nas posições do debate, que se limitam e se restringem. E perde especialmente com as discussões e acusações pobres que se alastram nas redes sociais, nos bares e locais de trabalho, lares e faculdades.

Não demorou muito: tão logo a queda da aeronave que transportava o candidato fora noticiada, esquerda e direita trocavam acusações infundadas de que Dilma, Lula, ou Aécio teriam causado o acidente; acusações que não agregam nada ao debate, mas que servem muito bem para "justificar" agressões e insultos por ambos os lados. Não é hora para especulações; o momento é de luto e de calma. Não podemos permitir que essa perde venha a danificar - ainda mais - a nossa já combalida democracia, tão frágil e tão jovem.

Perderam-se também outras seis vidas. Um total de sete seres humanos mortos, desrespeitados por aqueles que fazem uso politiqueiro da tragédia. Enquanto partidários do PT e do PSDB lançam acusações sem provas, os candidatos dos dois partidos manifestaram seu pesar sobre a morte do candidato - como deveria ser feito. Suspenderam também as agendas de campanha. O mesmo foi feito por Eduardo Jorge, do PV, que lamentou a perda de uma liderança jovem - apenas 49 anos.

Eduardo Campos tinha uma coragem rara na política brasileira: se dispunha a defender posições "controversas", sem temer perder uma parcela do eleitorado. Coisa que já fazia quando ministro - quando defendeu, com sucesso, a pesquisa com células tronco. Agora a campanha passa provavelmente para a vice, Marina Silva - que periga pender em direção aos interesses do eleitorado mais conservador em várias questões sociais. Outra perda para o país, vendo os pactos de governabilidade da atual gestão e do PSDB.

Agora deve ser apurado as causas do acidente fatal - preferencialmente, de forma honesta, sem espaço para politicagens e sem ficar procurando "um culpado" em algo que ao que tudo indica fora uma fatalidade. Não é hora para alegações de sabotagem. Menos ainda para expressar o que há de mais baixo na natureza humana, desejando que outros candidatos passem pelo o mesmo, lamentando que o avião não caiu em Brasília, ou outras expressões de ódio - a hora é de respeito e luto, não de raiva e rancor. Menos ainda de ameaças e insultos, piadas de mal gosto e teorias conspiratórias contra quem quer que seja.

Embora eu não tivesse nenhuma intenção de votar no candidato, pesa-me profundamente a prematura e trágica morte de Eduardo Campos. Com seu súbito falecimento, perdemos todos: a democracia brasileira perde um candidato, o debate se empobrece em meio a especulações e acusações infundadas, e o país perde um grande homem. Por mais que não fosse meu candidato, tenho um profundo respeito por seus feitos quando ministro da Ciência e Tecnologia. Aos colegas e amigos que sejam simpatizantes ou filiados ao PSB, aos familiares e amigos do candidato, e a todos, minhas condolências.

Não nutro nenhuma simpatia por Aécio Neves, e tenho cada vez menos simpatia por Dilma Rousseff - no entanto, mesmo que o avião fosse o de Aécio, ainda lamentaria a perda para a nação - o mínimo a ser feito como ser humano e como defensor da democracia. Desejar a violência contra a oposição não beneficia ninguém, salvo aqueles que buscam o autoritarismo. Estamos de Luto.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Isso é justiça?

Fazer "justiça com as próprias mãos" está virando uma coisa comum, ou ao menos assim parece: neste fim de semana, pela 21ª vez no ano, uma pessoa foi morta como resultado de justiçamentos. Praticamente um linchamento fatal por semana, um total de 188 justiçamentos desde fevereiro - mais de um por dia. Em Guarujá, a dona de casa Fabiane Mara de Jesus, acusada de sequestrar e matar crianças para rituais de magia negra¹. Ontem, pouco após a meia-noite, outro homem faleceu em Juazeiro do Norte. Como ocorreu com Alailton Ferreira, Marcelo Pereira da Silva, e Adilson Feliciana, não há sequer prova de que os crimes do qual foram acusados ocorreram. Mas isso não impediu que fossem mortos. Ou que suas mortes, em sua maioria, fossem ignoradas pela justiça

Também se tornando lugar comum está a defesa dessa barbárie. Entre os comentários padrão temos os costumeiros berros online de "bandido bom é bandido morto", "tem mais é que matar mesmo", "queria ver na mão do povo" e outros gritos enfurecidos em reação a qualquer crime; O velho e batido "ninguém apanha por nada" (mesmo provado que a vítima não fez nada; é o conhecido de radialistas "mas alguma coisa ele fez"); "ah, agora é inocente, queria ver se estuprasse tua filha" (quando o agredido foi acusado de... pequenos furtos - a escalação do crime como defesa da violência); e outras coisas mais grotescas - sempre jogando a culpa na vítima, querendo investigar "o que ela fez de errado" (e não "porque ela foi atacada"), e na falta de provas concluindo "deve ter escondido bem". 

A cena infame, que trouxe o horror a tona:
mesmo o rapaz, nu e ferido, sendo infrator, isso é justo?
Não bastasse isso, em tempos recentes tem se "formadores de opinião" e páginas "jornalisticas" estimulando a violência. Algumas, ao mesmo tempo que criticam a ação dos "justiceiros", agem como se o problema fosse só o fato de algumas vítimas serem inocentes; outras, mesmo sabendo que sequer houve crime, ainda tentam especular que a vítima talvez não fosse inocente (ou que é culpada por ter os amigos errados). Como se a barbárie pode se tornar justa por ter uma desculpa, ou se direitos básicos fossem por água abaixo por se ter culpa. 



Mas nunca assumindo o que claramente fazem: Rachel Sheherazade não "defendeu o linchamento" só disse que era "compreensível" o que chamou de legítima defesa da sociedade. Datena, Prates e tantos outros, ao dizer que bandido bom é bandido morto, que tem que encher de porrada, e etc, não estão defendendo a violência: "eles nunca disseram que era pra bater em ninguém!" dizem os fãs. A página do facebook, que divulgou os boatos (algo que jornalismo compromissado com a verdade não faz) e o retrato falado que culminaram na morte de Fabiane "nunca acusou ninguém, sempre disse que eram boatos" (como se boatos não espalhassem o medo e ódio - afinal o velho libelo de sangue nunca envolveu afirmar que judeus sequestravam crianças - só "disseram me que...")

Não, sem exceção lavam as mãos - imundas com o sangue de inocentes e culpados, igualmente privados de um julgamento justo, igualmente executados pelas mesmas pessoas que lhe serviram de juri, promotor e juiz. Ignora-se a responsabilidade da imprensa na esfera pública. Ignora-se o impacto que acusações levianas e impensadas podem ter na vida de alguém - lição que deveria ter sido aprendida com a Escola Base, vinte anos atrás. Quantas vidas mais devem ser arruinadas - ou perdidas - até que se aprenda a não fazer o que essa página irresponsável recentemente fez? Quanto a se a irresponsabilidade de divulgar boatos e retratos falados como fatos foi criminosa, deixo à justiça para decidir.

Ao invés disso, temos a defesa do fofoqueiro da escola, depois da briga que ele começou: "não afirmei que ciclano falou mal de beltrano, só que me contaram que". Ao invés de admitirem que seu discurso teve impacto na violência, reproduzem ainda mais esse discurso, ao dizer ora que é "compreensível", ou que o vigilantismo é culpa do estado, ora ao dizer que o problema são esses "animais/bandidos/psicopatas" travestidos de cidadão de bem. Enquanto isso, um rapaz em Gastão Vidigal morreu espancado porque uma turba o confundiu com um pedófilo


Ignora-se até a responsabilidade dos agressores: a culpa é do governo federal que é omisso (embora a segurança pública seja responsabilidade dos estados e municípios); a culpa é do caos gerado pelo PT (embora a violência urbana seja um problema de longa data, que muito antecede o governo - pífio - do PT, e tem raízes muito mais profundas do que políticas sociais); a culpa é do crime, que deixou o povo sem escolha; a culpa é do bandido (executado sem provas). E é neste último que sempre recaí a culpa: na vítima de violência "justiceira" - seja essa por parte da polícia agindo a revelia da lei (como em esquadrões da morte) ou por parte de turbas populares de cidadãos "de bem".

Suspeito no Piauí foi amarrado sobre formigueiro, como
forma de tortura.
Uma coisa que me aturdiu, e muito, foram as defesas ao justiçamento com "ninguém falou em espancar gente inocente, mas com quem é culpado é compreensível". Essa defesa (parafraseada), tão assustadoramente comum, sofre de dois problemas... o primeiro é achar que acusações bastam para saber se alguém é ou não culpado (e aí vem a obsessão em encontrar - ou fabricar - algum crime pro morto). O outro, mais grave, é achar que violência contra um criminoso deixa de ser crime - ou que autoriza a superar o crime dele, como os cidadãos de "bem" que amputaram as mãos de um rapaz acusado de furtos em Joinville.  

Mas para alguns, como dá para notar, a aura de paranoia do vigilantismo vale a falsa sensação de segurança. Cito aqui o reverendo Al Sharpton: É um peso inigualável, e difícil de se articular, nascer um suspeito e ter que operar e se comportar de maneira  a não provocar ou exacerbar a paranoia de alguém. É isso que desejamos para a sociedade? Para não ter medo do crime, viver com medo de ser confundido com um bandido e espancado ou linchado? Engraçado como essa "justiça" é a mesma aplicada em comunidades tomadas pelo crime e estados onde a justiça tribal substituí o estado de direito. Trocaremos então um grupo de bandidos por outro? Esquecemos o princípio fundamental de que se é inocente até que se prove o contrário, para trocar por "culpado à partir da primeira acusação"?

E só mais uma coisa, que diz muito sobre quem é, e quem não é linchado: 

Ah, e a falecida Fabiane Mara de Jesus deixa duas filhas, uma de treze e uma de um ano. Meus pêsames às meninas, e ao marido, que está processando a página responsável pela boataria. Uma tragédia começada pela "boa" e velha fofoca. 

¹ alguns vão lembrar que isso soa muito como o medieval libelo de sangue contra os judeus - macabramente apropriado visto a medievalidade do pensamento dos justiceiros. 


terça-feira, 15 de abril de 2014

Tolerância religiosa II: o centro comunitário judeu

Fonte: WCBV
Neste domingo, outro caso de intolerância religiosa veio a tona: um homem com um histórico de retórica intolerante invadiu um centro comunitário judaico no Kansas, matando três pessoas: um garoto de 14 anos, Reat Griffin Underwood, seu avô, Wiiliam Lewis Corporon, um dentista de 69, e uma mulher de 53,Terri LaMano, que estava visitando a mãe. Nenhum dos mortos era judeu. Outras duas pessoas estiveram na mira do perpetrador, mas não foram alvejadas. Até onde se sabe, nenhuma das vítimas era conhecida do terrorista atirador. 


Embora o ataque tenha sido indiscriminado, mirado em um centro comunitário e cercado por discursos de ódio, o termo "terrorista" não foi utilizado pela imprensa; detido como principal suspeito do ataque, Frazer Glenn Cross - vulgo Frazer Glenn Mueller - foi líder e fundador de uma célula da Ku Klux Klan, e do Partido Patriota Branco. Cross já havia sido preso anteriormente por planejar o assassinato de um dos fundadores do Southern Povery Lawcenter e tinha um histórico de discursos anti-semitas, segundo o FBI. Quando detido pela polícia, bradava palavras de ódio e encerrou com "heil hitler". Apesar da intenção clara e indiscriminada de intimidar a comunidade judaica, Cross não está sendo tratado como terrorista, mas o caso está sendo tratado como um crime de ódio - ao menos isso. 

Frazer Glenn Cross gritou "Heil Hitler" ao ser preso. Fonte: Kctv
Segundo a Anti Defamation League. Ataques contra centros comunitários judaicos, assim como contra sinagogas, são comuns nessa época do ano - graças a combinação da páscoa e do aniversário de Adolph Hitler (no dia 20 de abril), usados como desculpas por fanáticos religiosos (que culpam os judeus pela morte de cristo) e neonazistas (celebrando o aniversário do Führer). A entidade foi uma das poucas a chamar a tragédia de ataque terrorista. Se o ataque de Cross tem a ver com alguma das datas, não se sabe. Coisa parecida acontece em setembro, quanto "patriotas" usam o aniversário do atentado de 11/9 como desculpa para intimidar muçulmanos. 

Munido de uma escopeta, Cross abriu fogo contra o carro de Corporon e Underwood, matando os dois. Avô e neto estavam no centro para um concurso de canto mantido pelo município, e que poderia render ao rapaz uma bolsa de estudos. Depois, enquanto o centro trancou as portas como medida de segurança, Cross se dirigiu para Villa Shalom, uma casa de repouso que fazia parte do complexo. Lá, matou LaManno. A arma foi obtida através de um laranja; em virtude de condenações anteriores, Cross não tinha acesso legal a armas.

No ano passado, um rapaz de 21 anos abriu fogo contra uma sinagoga em Utah. Em outubro de 2012, sinagogas em duas cidades francesas foram alvo de ataques; Em junho de 2009, um homem de 88 anos matou um segurança no Museu Nacional do Holocausto, em Washington; em 2006, um homem baleou seis mulheres, matando uma, na sede da Federação Judaica de Seattle; casos similares se acumulam ao  longo dos anos. Há de se ressaltar, no entanto, que esses crimes de ódio não se restringem a comunidade judaica: em maio do ano passado, um terrorista atirador invadiu um templo Sikh no Wisconsin, matando sete pessoas - desde 2001, a comunidade sikh foi alvo de mais de 300 ataques. No mesmo ano, uma mesquita foi incendiada por duas vezes no Missouri, e em março deste ano, tiros foram disparados contra uma mesquita em Illinois, durante o horário de culto. No Reino Unido, ano passado dois soldados lançaram explosivos contra uma mesquita em Grimsby - a dupla foi condenada a seis naos de prisão.

Templo Sikh foi avo de ataque em 2013. Fonte: getty Images
Enquanto alguns insistem em negar que intolerância exista, ou que é uma "coisa do passado", esses casos estão aí para mostrar que, infelizmente, o ódio está bem vivo. Junte isso à maneira irregular como ataques são relatados. Enquanto ataques perpetrados por muçulmanos são relatados como "terrorismo", supremacistas raciais, fanáticos cristãos e "patriotas" são referidos apenas como "atiradores"; mesmo o ataque com bombas em Grimsby, ou o massacre de Utoya, na Noruega, foram raras vezes referidos como "atentados terroristas". 

O que levanta a pergunta do que ocorreria caso o ataque tivesse realizado por um muçulmano, ou caso as vítimas fossem islâmicas - ou se o alvo fosse uma sede da YMCA, um igreja, ou um centro cristão. Como seria o noticiário e o debate a respeito? Sendo o alvo judeu, apesar das vítimas não serem, já se vê lamentavelmente uma grande dose de discursos relativizando o ataque, dizendo que é "ditadura do politicamente correto", que não foi ódio, e etc. Quando o templo Sikh foi atacado, abundaram comentários dizendo que "eles mereciam", ignorando não apenas que uma minoria dentre os islâmicos apoia terroristas (enquanto uma parte considerável dos americanos apoia o terrorismo de estado manifesto na forma de signature strikes, double tapping e outras estratégias de "guerra preventiva), mas também que os Sikhs não são islâmicos

Me pergunto se não estamos indo na mesma direção que os EUA na expressão do ódio e da discriminação - Já temos casos numerosos de violência contra religiões afro, alguns deles com ajuda em peso de agentes corruptos do Estado. Temos também uma cultura de violência contra "indesejáveis", e uso de concessões públicas para pregar ódio contra minorias religiosas, sexuais e raciais. Nas áreas mais isoladas do país, já tivemos incêndios contra templos indígenas. O que difere é que nos EUA e na Europa, a violência religiosa - perpetrada com frequência por grupos cristãos ultra conservadores, contra judeus e islâmicos - ocorre no centro de grandes cidades, de forma ainda mais agressiva. E é isso que dá mais medo. 



Isso, e a possibilidade que já ocorra, mas os jornais e as autoridades ignorem ou sejam coniventes com a agressão.

Tolerância religiosa I: o centro comunitário islâmico.

Espaço comunitário está para ser demolido. 
Park 51, o infame centro comunitário islâmico em Nova York erroneamente conhecido como a "Mesquita do Ground Zero" - abrigado em um prédio comercial à dois quarteirões de distância do antigo World Trade Center - está para ser demolido: na semana passada, o departamento de edificações da Prefeitura de Nova York confirmou estar avaliando uma aplicação para a demolição do edifício de quatro andares, junto com um prédio adjacente, para a construção de um edifício maior no local, segundo a Agência Reuters.

A demolição pode ser uma preparação para a construção definitiva do centro comunitário; em 2011, Sharif El-Gamal, da Soho Properties, havia expressado planos para inaugurar um complexo de 13 andares, com espaços para oração, recreação e oficinas inter-religiosas. No entanto, um porta voz da companhia não confirmou à agência se a demolição era um passo para o projeto maior. 

O projeto, orçado em US$ 100 milhões, assim como a mera existência do centro comunitário, fora recebido com protestos e alegações de que construir "uma mesquita em cima do World Trade Center" seria "um desrespeito às vítimas de 11/9". Correram também acusações de que o espaço seria na verdade "um centro de recrutamento para terroristas", uma "Mecca para o fundamentalismo" (ao invés da Mecca de fato) e "equivalente a um monumento a Hitler em Auschwitz". 

À época, em 2010, a polêmica levou a um retrocesso nas relações inter-religiosas nos EUA: pesquisas revelaram que para 14% dos americanos - um em cada sete - mantinham a opinião de que mesquitas deveriam ser proibidas no país, enquanto 34% - um terço - achavam que havia lugares que deveriam ser abertos para todas as religiões, exceto a islâmica. Para o ex-congressista republicano Newt Gingrich, a questão não tratava de "liberdades religiosas", pois o Islã não era "uma religião, e sim 'uma ideologia assassina'". 

No entanto, a demolição dos edifícios pode ser o fim do centro comunitário: segundo o Daily Beast, o projeto de expansão não é a realização da Cordoba House (o projeto para o centro comunitário), mas sim para projetos comerciais - a falta de apoio da comunidade e o desvio de dinheiro de um dos principais apoiadores financeiros da proposta parecem ter soterrado o "sonho". O destino do centro após a demolição é uma incógnita. 

As reações violentas à época da fundação do Centro e a indiferença agora são indícios que os EUA estão começando a superar o ódio que veio a tona após os ataques de 11/9 de 2001. No entanto, essa superação ainda é lenta, e fanáticos parecem empenhados em aumentar a intolerância: em 2012, republicanos levantaram teorias conspiratórias contra a assessora de Hillary Clinton, Huma Abedin; Em julho do ano passado, a Fox News realizou uma entrevista vergonhosa com o historiador Reza Aslan e em março desse ano, o congressista republicano Louie Gohmert alegou que a casa branca estaria "tomada pela irmandade muçulmana", e comentaristas da Fox News perguntaram se "alguém se deu o trabalho de pesquisar se aviam muçulmanos no avião da Malaysia Airlines". Esses casos são grãos de areia em um oceano de ódio. Até hoje - e não só nos EUA - para muitos "terrorista" e "muçulmano" são sinônimos, o termo terrorista raramente é usado para se referir a agressores não islâmicos. 

No geral, a situação é lastimável - como proposto, o espaço serviria como um instrumento importante para combater a intolerância religiosa, e moldar um futuro mais tolerante. No entanto, serviu de raiz para ódio e fanatismo - e não por parte dos islâmicos.  



terça-feira, 8 de abril de 2014

Ucrânia: As chamas da guerra voltam a arder

Manifestantes pró-Rússia tomaram prédios públicos.
Depois da anexação "via referendo" da Crimeia pelos russos (em um referendo onde as escolhas eram "ser anexado à Rússia" e "se separar da Ucrânia"), outra região ucraniana agora se encontra imersa na violência separatista: o sudeste do país agora se encontra tomado por protestos buscando também uma anexação à Rússia, e pedindo para que o país vizinho mande tropas para intervir. 

Nesta terça-feira, depois de ter prédios públicos tomados por manifestantes clamando pela invasão russa, o governo de Khiev começou a reagir. Em Donetsk, onde a situação é mais grave, militantes pró-Rússia proclamaram a cidade uma república independente, e o governo interino da Ucrânia está enviando não só forças de segurança, mas também "voluntários" ligados a grupos ultranacionalistas e a extrema direita, assim como mercenários da antiga Blackwater Security. Em Kharkiv, a prisão de cerca de 70 manifestantes pró-Rússia foi considerada pelos russos como "uma agressão"; em uma demonstração rara de contenção, protestos em Mariupol e Luhansk não foram repreendidos.

Essa é uma situação que não tem soluções simples: em meio a violência que ameaça eclodir em uma guerra civil (ou pior, uma guerra total) encontram-se conflitos étnicos, ideológicos, uma ressurgência da extrema direita (na forma de grupos como o Pravy Sector - lit Setor Direito - e o partido nacionalista Svoboda) e uma retomada da retórica de conflito entre EUA e Rússia (ambos interessados no controle da região). Falar em um resultado positivo para o conflito atual é difícil - para não falar em ingênuo.

A situação na Ucrânia é de instabilidade dentro e fora: nesta terça feira, congressistas caíram na porrada depois que membros do partido comunista acusaram os nacionalistas de "fazerem o trabalho para Moscou" com a maneira em que conduziram os protestos no começo do ano; para o deputado comunista Petro Simonenko, os nacionalistas gerarem precedentes para justificar a tomada de prédios públicos pelos separatistas ao terem feito o mesmo para derrubar o presidente Viktor Yanukovych. Em resposta, dois deputados nacionalistas o retiraram da tribuna. 

Na fronteira com a Rússia, a pressão de Moscou é palpável: de um lado, os pedidos por intervenção dos separatistas; do outro, os alertas do ministério de relações exteriores de Moscou, que podem facilmente ser tomados como ameaças. No começo da semana, representantes do governo Russo pediram para que Kiev "cessasse toda e qualquer preparação militar que pudesse levar a uma guerra civil", adicionando que "[Kiev] estaria tentando suprimir através da força os residentes do sudeste do país, que são contra as atuas políticas do governo de Kiev" - a mesma linguagem foi usada para justificar a intervenção na Crimeia. 

Mas como notou o The Guardian, a mesma Rússia que alerta contra "preparações militares" é aquela que mantém milhares de soldados nas fronteiras com a Ucrânia; até o momento, Kiev não fez qualquer ação contra o poderio russo, mas nesta segunda alertou que qualquer nova intrusão russa significaria guerra; Guerra esta com o apoio em peso dos EUA e da Otan, ao que tudo indica.


Também segundo o The Guardian, enquanto os olhos do mundo agora se viram para a Rússia como "causa" do conflito na Ucrânia, para estes, grande parte da responsabilidade recaí sobre a União Européia - responsável pela re-eleição irregular de Yanukovych em 2004 - que não sutilmente tentou "fechar as portas" da Ucrânia para a Rússia; a Otan e a crescente militarização ao redor do país, que para o governo Russo serve como outra justificativa para a militarização; e a "hipocrisia coletiva" do ocidente - o mesmo que apoiou a secessão do Kosovo "pelo direito de autodeterminação dos povos", mas condena a secessão da Crimeia, e o mesmo que realizou repetidas "mudanças de regime" em prol da "democracia" - e estabeleceu precedente para a intervenção russa na Crimeia. 

Enquanto isso, o Secretário de Estado dos EUA, John Kerry, alerta para o óbvio: A Rússia estaria tramando uma intervenção "ao estilo da da Crimeia". Segundo Kerry, os eventos recentes tem implicações "perturbadoras"; Em Luhansk, manifestantes estariam colocando minas ao redor dos prédios ocupados, alega o secretário de estado de Barack Obama. Na visão de Washington, é "óbvio" que provocadores russos estão envolvidos em acirrar as tensões no leste do país - em resposta, Moscou levantou as alegações de cerca de 150 operativos da Greystone (a antiga Blackwater) estariam operando na Ucrânia sob o disfarce de "agentes da lei". 

Enquanto a Rússia se prepara para uma "possível-mas-não-premeditada-intervenção", os EUA mantém a ameaça de novas sanções contra o governo russo; Medida que até o momento, pouco parece ter feito em prol do povo ucraniano, que teria ainda mais a perder com a intervenção militar americana. Do outro lado, a companhia de gás Russa Gazpron aumentou os preços do gás para a Ucrânia em 80%, uma medida política para forçar o país a pagar supostas dívidas de US$ 2.2 bilhões, assim como aumentar a instabilidade na região. 

Como está, a Ucrânia se encontra presa no meio do um jogo de poder do qual ela é apenas uma peça; Os interesses ucranianos são secundários em meio ao vai-e-vem de jogadas Russas, Europeias e Americanas envolvendo o já combalido país, para o qual parecem haver poucos prospectos além da guerra. No melhor caso, a Ucrânia irá lentamente se esfacelar frente ao avanço russo, em pequenas guerras civis, rebeliões e "intervenções de paz". No pior cenário, servirá de campo de batalha para algo muito maio que ela mesma - de qualquer maneira, salvo algum evento imprevisto, nada parece indicar um fim satisfatório para essa crise. 

E enquanto alguns apelam para reducionismos tolos, tentando pintar os EUA ou a Rússia como "heróis" contra "o imperialismo", o fato é que o que temos é um duelo de mentalidades imperialistas e autoritárias, do mesmo naipe em que tínhamos na Guerra Fria - com a diferença que agora ambos os lados são capitalistas. 

Esperemos pelo melhor. Caso contrário, não somente a Ucrânia queimará, mas todo o globo. 

terça-feira, 25 de março de 2014

A ameaça pífia da marcha da vergonha

Em prol do autoritarismo, do obscurantismo e uma mentalidade
datando da guerra fria. 
Depois de muita bravata, peito estufado e "patriotismo" fingido por parte de quem queria jogar o país de volta às sombras, tivemos de fato um momento histórico neste sábado, dia 22: o maior e mais cômico fiasco já visto em um "protesto" - e que ainda assim alguns ultra-conservadores tomaram como vitória: a reedição da infame "Marcha da Família com Deus pela Liberdade" - que em 1964 serviu de base para o golpe militar que nos atou a 21 anos de autoritarismo - mal conseguiu em sua maior mobilização (em São Paulo) superar a marca de 500 pessoas. 

Em outras cidades, os números foram ainda mais risíveis: em Recife, foram seis; Em Florianópolis, apenas três. Em Joinville, 14, frustrados pelo contra-protesto de mais de 60; Porto Alegre, cerca de 40, entre eles neonazistas. Na capital carioca, cerca de 150. Estima-se que juntando todas as marchas - nome apropriado, vendo a tara pelo militarismo dos marchantes - tenham somado pouco mais de cinco mil pessoas. Clamando por um golpe "intervenção" militar "constitucional", a patotinha conservadora aproveitou o fim de semana para clamar contra o comunismo, contra "ditadura do PT", pela pena de morte, em prol da tortura, Bolsonaro para presidente, e outros memes velhos da direita brasileira. 

Constituição não apoia manifestantes...
Antes de qualquer coisa, a base da argumentação golpista é o artigo 142 da constituição, que na leitura deles - uma leitura que só pode ser de uma versão de Arret, a terra bizarra da DC - afirma que cabe as forças armadas tomar o poder se eu não gostar do governo o governo for de esquerda ilegítimo. Segue o artigo:

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
Alguém  consegue ver nesse artigo algum ponto falando em intervenção militar? Que as forças armadas tem poder de derrubar presidentes? Esquecem-se que a comandante maior das forças armadas ainda é - e até que deixe o cargo, vai continuar sendo - a presidente da República, Dilma Roussef? A tara por golpe é tamanha que conseguem ler algo que não está lá - não surpreendente vindo de quem crê piamente que o governo PTista é totalitarista. 

Para não mencionar a questão do temor constante da "ameaça comunista" - expresso de formas violentas nas redes sociais,  num misto de esquizofrenia paranoide e ódio concentrado, visto igualmente durante as marchas, demonstrando que essas pessoas ainda não saíram da mentalidade da guerra fria; Afinal, são pessoas que ainda leem, por exemplo, a questão Ucrânia como "comunismoXcapitalismo", ignorando plenamente que a Rússia não é mais comunista desde os anos 90 (e que se aproxima muito mais da sociedade ideal da direita conservadora do que os EUA).


Manifestante em Porto Alegre faz saudação fascista;
jornalistas e cartunista foram ameaçados.
E a mentalidade de guerra foi o que marcou a marcha da vergonha; em São Paulo, dois manifestantes se engalfinharam por divergências de opinião, a polícia teve que resgatar um transeunte agredido por usar uma camisa do PT, e um aposentado foi expulso da marcha, sob os gritos de "comunista", por usar calça e tênis vermelhos; no Rio, a marcha terminou em confronto com um contra protesto - durante o qual um adepto do "filósofo" Olavo de Carvalho fez uma demonstração pública de idiotice - a ignorância combinada com orgulho - berrando "Eu tenho cultura, você não! Você é burro, eu sou inteligente!". Em Porto Alegre, membros da marcha fizeram saudações nazistas e ameaçaram o cartunista Carlos Latuff - e estas são as pessoas que se dizem cidadãos de bem, preocupadas com "o futuro do país". 


Citando o professor e jornalista Gleber Pieniz, temos também a maneira que o aparato policial lidou com os golpistas e com os manifestantes de fato em prol da democracia: protegendo os primeiros e reprimindo os últimos: 
"Seria apenas curioso se não fosse triste: enquanto uma minoria clamava por novo golpe e incitava a tomada do estado pela força militar, a sempre equivocada polícia tratava a maioria de estudantes e trabalhadores como se fossem criminosos. Havia, nitidamente, mais policiais, viaturas, cavalos, cacetetes, pistolas e espingardas do que "patriotas" em marcha. Todo o aparato repressivo deu atenção exclusiva à maioria, impedindo a livre circulação e registro, exigindo documentos e ameaçando de prisão quem desacatasse qualquer ordem arbitrária".
Ira preocupante. 
 O resultado risível é ainda assim preocupante - o grau de fanatismo de alguns dos organizadores da marcha é tamanho, que estão cantando vitória e "a morte do PTismo" após uma demonstração tão pífia. E são pessoas de tal "integridade moral" e honestidade intelectual cuja reação ao fiasco foi composta por ameaças de violência, alegações de "mídia vendida", e que esse é só "o primeiro disparo em uma guerra". Coisas assustadoras - e que é de se esperar que sejam apenas espasmos de morte de uma mentalidade em estado terminal. Já demonstraram ser uma minoria pífia e patética; só falta reconhecerem sua insignificância. 


Sabendo que não tem chance nas urnas, o pedido é por
golpe "intervenção. 
Essa tara golpista tem uma explicação simples: eles sabem que nas urnas, mesmo com as numerosas falhas do governo Dilma - e não são poucas - eles não ganham. Por isso, apelam para a ameaça golpista, já que o plano B - cercear o voto de quem votaria no PT - não funcionará, a unica solução que os resta é derrubar o PT a força. O que não acontecerá. Que fique registrada a cara suja e patética dessa gente que prefere a ditadura à reconhecer o resultado das eleições. 

O pior que é até as eleições, a insanidade dessa gente vai só crescer - e quando perderem, vão usar o mesmo batido argumento: "ninguém que eu conheço votou no -insirapartidoaqui-, a eleição foi roubada". Triste. E assustador.

E para quem não sabe...a  marcha golpista é na verdade crime; se o PT fosse tão autoritário, os marchantes estariam agora atrás das grades. É surpreendente que pessoas com uma tara legalista tão grande quanto esses "cidadãos preocupados" não tenha ciência disso - mas por outro lado, eles inventaram uma interpretação nova de um artigo da constituição. Segue os artigos 22 e 23 da lei 7170 de 14 de dezembro de 1983, ainda em vigor: 

Art. 22 - Fazer, em público, propaganda:
I - de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social;
II - de discriminação racial, de luta pela violência entre as classes sociais, de perseguição religiosa;
III - de guerra;
IV - de qualquer dos crimes previstos nesta Lei.
Pena: detenção, de 1 a 4 anos.
§ 1º - A pena é aumentada de um terço quando a propaganda for feita em local de trabalho ou por meio de rádio ou televisão.
§ 2º - Sujeita-se à mesma pena quem distribui ou redistribui:
a) fundos destinados a realizar a propaganda de que trata este artigo;
b) ostensiva ou clandestinamente boletins ou panfletos contendo a mesma propaganda.
§ 3º - Não constitui propaganda criminosa a exposição, a crítica ou o debate de quaisquer doutrinas.
Art. 23 - Incitar:
I - à subversão da ordem política ou social;
II - à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições
civis;
III - à luta com violência entre as classes sociais;
IV - à prática de qualquer dos crimes previstos nesta Lei.
Pena: reclusão, de 1 a 4 anos.


Fico no aguardo para que os "defensores da lei constitucional" se entreguem as autoridades competentes. E é engraçado como aqueles que clamam que o governo é autoritário e exercitam a sua obsessão golpista jamais são punidos, mesmo tendo legislação perfeitamente compreensível que puna tais crimes; enquanto a direita Brasileira chama Dilma de totalitarista, e a direita americana chama Obama de ditador... eu digo que o problema interno deles é simples: falta espinha e tenta-se apaziguar a oposição. São como Neville Chamberlain lidando com Hitler: se fizermos tudo o que eles querem e não repreendermos os crimes deles, eles nos deixarão em paz, certo?

Querem expressar insatisfação com o governo em si? Façam isso nas urnas. Se tem alguma pauta específica, que façam seus protestos - mas se sua pauta é "eu não gosto do PT e não vou aceitar isso, golpe agora", lamento, mas além de fazer um protesto ilegítimo, estúpido, arrogante e autoritário... você é criminoso. Eu espero que depois dessa cresçam, e que aceitem o resultado das urnas - seja ele qual for.

E não, não vai dar Bolsonaro. 

quarta-feira, 5 de março de 2014

Por sua opinião, nós lhe mandaremos a Crimeia

Na manhã desta terça-feira, Abby Martin, âncora do canal de TV RT, saiu um pouco do script na sua cobertura da crise Ucraniana. Antes de encerrar a transmissão do seu programa, Breaking the Set, ela expressou sua insatisfação com as ações do governo russo, no que ela chamou explicitamente de "ocupação militar". 

Eis o discurso de Martin:

“Antes que eu encerre o programa, eu queria dizer algo do meu coração sobre a atual crise política na Ucrânia, e a ocupação russa da Crimeia. Só porque eu trabalho aqui, na RT, não quer dizer que eu não tenha independência editorial. E eu não posso dizer o bastante o quanto eu sou contra qualquer intervenção militar nos afazeres de nações soberanas. O que a Russia fez é errado. 
Eu admito que não sei o quanto deveria sobre a história da Ucrânia ou as dinâmicas culturais da região. Mas o que eu sei é que intervenção militar nunca é a resposta. E eu não vou sentar aqui e fazer apologia ou defender agressão militar. Tudo que podemos fazer agora é esperar por um resultado pacífico para uma situação terrível, e prevenir outra Guerra Fria entre múltiplas superpotências. Até lá, eu continuarei a contar a verdade como eu a vejo. 
Só um problema para o lado da jornalista, e um que é um velho conhecido de muitos profissionais na área:  ao fazer isso ela foi contra os interesses dos chefes. E quem são os chefes? Neste caso, o governo russo. A reação que se seguiu pode ter vindo por ordem do Kremlin, ou pode ter sido da emissora, não se sabe, mas... Como "recompensa" pela audácia de dizer o que pensa, Martin recebeu uma "proposta" ousada: ser enviada para conhecer a realidade da situação do "epicentro da estória". 

Como declarou a emissora: 
Contrariando a opinião popular, RT não espanca seus jornalistas até a submissão, e eles estão livres para expressarem suas próprias opiniões, não só particularmente, como no ar. Esse é o caso do comentário de Abby quanto a Ucrânia.
Nós respeitamos as visões dela, e as visões de todos nossos jornalistas, apresentadores e anfitriões de nossos programas,  e não haverá nenhuma reprimenda contra a senhorita Martin. 
Em seus comentários, a senhorita Martin também notou que ela não possui conhecimento profundo da realidade da situação na Crimeia. Portanto, nós mandaremos ela para a Crimeia para dá-la a oportunidade de formar sua opinião do epicentro da estória. 
Por um lado, essa é uma ótima proposta para um jornalista, especialmente alguém com um foco voltado para política internacional - mas no contexto do evento, isso foi mais um caso de "você pode expressar sua opinião, da linha de frente".  Martin recusou o convite - que fim essa história vai ter, ainda não se sabe; ela pode ser pressionada a ir para a Crimeia, ou quando chegar a época de renovar o contrato, ela pode ser despedida. Uma triste realidade.


E que não é exclusividade da RT, ou de jornais mantidos por estados. Em 2003, a então repórter da MSNBC, Ashleigh Banfield criticou a cobertura dada a guerra do Iraque, e o comportamento de certos apresentadores "patrióticos", durante uma palestra na Kansas State University. A opinião não agradou a Universal - e em resposta, por dez meses Banfield ficou sem um escritório na emissora. Quando recebeu um escritório novo,  este era  um armário. E durante dezessete meses, Banfield esteve presa a um contrato que não poderia largar, proibida contratualmente de procurar outro emprego. Não é a única, e a tática de "segurar" desafetos nas redações (quando estes tem nome demais para serem sumariamente demitidos) para que não vão até o concorrente é bem comum. 

Por si só, o caso de Abby Martin já é polêmico. Como parte do cenário maior (e com literatura farta - indicações ao fim do texto!), é representativo de como a pauta dos jornais, rádios e televisões está sujeita a interferência dos patrocinadores. Quem trabalhou na área sabe: quantas pautas não foram barradas pois não se enquadravam "no projeto editorial"? Quantas outras não entram porque é interesse dos patrocinadores? Jornalismo é um jogo de interesses. Seja mantido por estados, empresas ou ONGs, sempre há interesses - políticos, econômicos ou ideológicos - por trás de qualquer cobertura jornalística. As vezes abertamente, outras na surdina, e em alguns casos a interferência é maior - como o da RT, mantida por um estado bem autoritário. 

E os colegas de imprensa... alguém se dispõe a contar casos em que isso foi claro, que algo não entrou porque "não é o enquadramento que cabe a esse jornal"?

Para conhecer mais sobre essas relações:

Dunaway, J. (2013). Media Ownership and Story Tone in Campaign News. American Politics Research 41(1):24-53.  

McChesney, R. (2003). The Problem of Journalism: A Political Economic Contribution to an Explanation of the Crisis in Contemporary US Journalism. Journalism Studies 4(3):299-329.  

 Upshaw, J.; Chernov, G. and Koranda, D. (2007). Telling More than News: Commercial Influence in Local Television Stations. Electronic News 1(2):67-87.  

Stetka, V. (2012). From Multinationals to Business Tycoons: Media Ownership and Journalistic Autonomy in Central and Eastern Europe. The International Journal of Press/Politics. 17(4):433-456

Storr, J. (2013). Carribean Journalism’s Media Economy: Advancing Democracy and the Common Good? The International Communication Gazette. 







terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Paradoxos Critica: The LEGO Movie: Uma ode a criatividade

Personagens marcantes com um gostinho de infância.
O mundo nas mãos de um tirano, uma população complacente e obediente, alheia a opressão que a cerca, e a unica coisa que pode nos salvar é o especial, o escolhido; é com essa premissa "originalíssima" que LEGO Movie começa - e a maestria com a qual lida com a mais clichê de todas as jornadas heroicas é um atestado a criatividade que o filme (e os brinquedos) celebram. Enquanto outros filmes de marcas de brinquedos tentaram apelar para uma pretensa "seriedade" que resultou em níveis bélicos de estupidez, a direção e roteiro da dupla Phil Lord e Christopher Miller assume sem vergonha aquele olhar inocente, onde nenhuma ideia é idiota demais (salvo o sofá beliche!), ninguém é "um ninguém" e onde as instruções não são ordens, mas sugestões: faça o que vem em sua mente - e nada poderia ser mais LEGO que isso. 

ESPAÇONAVE!
Com uma trama sólida - boba, sim, mas sólida -, sacadas geniais, animação belíssima e atuações inspiradas, é difícil dizer o que é melhor em LEGO Movie; se são as referências infindáveis a história da LEGO ("e mais um monte de mundos que a gente não menciona"); se as piadas tolas, mas hilárias, dignas de um filme do trio Zucker, Abrams, Zucker; se são os personagens, como o Batman impagável de Will Arnet (deliciosamente babaca, arrogante e "durão"), o mago Vitruvius de Morgan Freeman (genial, ou epicamente idiota? você decide), o astronauta de 1980 e tantos de Charlie Day (ESPAÇONAVE!), o Mau Policial de Liam Neeson (e seu ódio por cadeiras), o cibernético pirata Barba de Metal de Nick Offerman ("Difícil? Difícil é limpar sua bunda com uma mão de gancho!"), a enérgica Uni-Kitty de Alison Brie (sem consistência em nada do que faz) ou as pontas de personagens famosos (destaque para o Lanterna Verde: risível e ainda assim melhor que no seu próprio filme); se é a trilha sonora, a revelação (um tanto previsível) do final, ou a maneira genial em que o filme aproveita o fato de ser tudo de LEGO para sequências de ação impressionantes. 

Emmet e sua única ideia na vida: O sofá beliche. Não deixe que uma
ideia ruim mate todas as suas outras: até ela pode ter um uso um dia
E no meio de tudo isso, algumas mensagens importantes - Assim como uma ode a criatividade, temos aqui um hino contra o conformismo. A jornada de Emmet (Chris Pratt) não é só uma de heroismo indesejado, causado por um encontro fortuito com o destino (na forma da "peça de resistência); trata se de uma sobre pensar por si mesmo, reconhecer aquilo que faz de você único e especial, e viver em cima disso - e não "do que diz no manual de instruções". Sua obsessão por "seguir o manual" e ser "perfeitinho" faz dele um pária sem notar - afinal, Emmet não é ninguém; não tem nada que o destaque, que chame atenção, é só um "yes man" para tudo e todos. Nunca divergindo, nunca se destacando, nunca discordando - sempre em segundo plano. Tão genérico que nem em aparência tem algo especial: seu rosto é o das minifiguras genéricas, aquele sorrisinho : ) em uma cara amarela, que todos conhecem. 

Muito além de um rostinho bonito. 
E num reflexo de como originalidade é lentamente sufocada, não apenas Emmet vive em função de regras prontas (sem jamais pensar nos problemas óbvios de tudo que segue cegamente), como sua única ideia original (o sofá beliche) é afundada toda vez que é mencionada. Ao mesmo tempo, na relação com os mestres construtores (em especial Wildstyle - dublada por Elizabeth Banks, muito além de um interesse romântico), uma ressalva: fazer o que se vem em mente, sem planos e sem ordem alguma é uma garantia ao fracasso. 

Business e sua arma secreta: não podemos controlar o mundo.
No extremo oposto do problema, o Lord Business de Will Ferrel dá a outra parte da mensagem: não pense que a sua ordem, as suas ideias e a sua visão de mundo devam ser a dos outros - se a aderência cega do herói as regras era a única coisa que o definia, a ordem perfeita de Business é o que destrói a identidade de todos. Ao querer congelar tudo em "perfeição", não há espaço para ninguém além dele próprio - e mesmo ele torna-se uma nulidade sem ninguém para interagir. O mundo é feito de pessoas - cada uma especial e única a sua maneira, e força-las a deixar de serem assim para seguir um "modelo ideal" é o auge do egoísmo. 

"Eu só trabalho em preto. E as vezes em cinzas muito escuros"
LEGO Movie é um filme previsível nos seus aspectos macro - até a grande revelação do climax é óbvia prestando-se atenção nas "relíquias" de Lord Business (cada uma com uma piada genial na nomenclatura... Kra Gle, Sword of X-Act Zero, Polísh Remover of Ná-Ill...). E isso não é de maneira nenhuma uma coisa ruim. Não há qualquer pretensão de ser "sério e culto" aqui; a inocência não é um pecado, mas uma virtude do roteiro, algo a ser celebrado. Inocência que se nota também no arco romântico entre Wildstyle e Emmet (nunca caindo para a malícia) e na resolução singela do verdadeiro conflito do filme. 

Se você curte LEGO, se tem filhos, se teve uma infância e não se envergonha dela, ou se simplesmente gosta de bons filmes, LEGO Movie é certeiro; impossível não se encantar por sua história, pelo charme tolo, ou pela beleza das cenas "em LEGO", feitas em um misto de computação gráfica e retoques de stop motion (difíceis de serem separados, de tão fiel aos blocos que a animação é). Ainda mais impossível é sair do cinema sem aquele gostinho de "quero mais". Deveria servir como uma lição para outros estúdios; assim que se trata uma linha de brinquedos no cinema, sem vergonha do que ela é.

Nota: 10/10

EVERYTHING IS AWESOME


terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Condenado, mas não pelo principal

No último domingo, Jordan Russel Davis completaria dezenove anos - Não fosse um encontro fatídico em um posto de gasolina, transformado em tragédia por uma legislação absurda que premia a violência e agrava os conflitos raciais no sul dos EUA. Seu assassino foi condenado - mas não por mata-lo. 

Morto por ser negro ouvindo musica alta. 
Em novembro de 2012, o estudante Jordan Davis, de 17 anos estava com um grupo de amigos em um posto de gasolina, em Jacksonville, Florida; enquanto um deles fazia compras na loja de conveniência, Davis e os amigos foram abordados por Michael Dunn, um programador e empresário de então 45 anos, irritado com o volume (e o tipo) da música que os rapazes ouviam. Após discussão, Dunn retornou ao seu carro, pegou uma pistola 9mm do porta luvas, e disparou dez vezes contra o carro de Davis, matando o rapaz. Depois da altercação, Dunn foi com a noiva para um hotel, pediu uma pizza e alugou um filme, como se nada tivesse acontecido. 


Neste fim de semana, após 30 horas de deliberação por parte dos jurados, Dunn foi condenado pelo incidente: três penas por tentativa de homicídio em segundo grau, uma pena por disparar arma de fogo contra um veículo ocupado, mas... nenhuma condenação pelo seu crime maior: pela morte de Davis, Dunn teve o julgamento anulado por "irregularidades" - como o fato do juiz ter explicitamente dito que "não era para condenar Dunn se achassem que ele tinha o direito de se defender" (quando ele era o agressor) e uma confusão por parte do juri a respeito do crime: julgado por homicídio premeditado, membros do juri entenderam que não era o caso pois Dunn não tinha ido ao posto de gasolina com a intenção de matar Davis. 

Dunn: depois de matar um rapaz de 17 anos e disparar dez vezes contra um automóvel, não chamou a polícia, não falou da suposta arma com a noiva, e pediu uma pizza como se a situação fosse a mais normal do mundo - cartas escritas na prisão revelam que ele "queria ensinar uma lição" aqueles "marginais". 
Notem o problema: na compreensão do juri, a acusação era invalida porque não havia um planejamento prévio do crime, e para o juiz, Dunn teria o direito de "Stand your Ground", e não tinha obrigação de se retirar - até aí tudo bem, mas isso ignora que Dunn retornou ao carro para buscar uma arma (o que por si só já elimina a ideia de autodefesa), e que não há como alegar que não houve intenção de matar quando Dunn disparou repetidas vezes contra um carro ocupado. 

A defesa do programador alega que Dunn sentiu-se ameaçado pois "teria visto uma escopeta dentro do carro" - arma que nunca foi encontrada pela polícia. Ele não informou sua noiva da suposta arma, nem chamou a polícia a respeito do ocorrido. Ele também alega que Davis saiu do carro para ataca-lo, e que ele atirou em auto defesa - mas ninguém além dele viu o rapaz sair do carro, ou qualquer arma. E após ser baleado duas vezes, uma delas na aorta, Jordan Davis continuava dentro do carro, com a porta fechada, contradizendo a versão de Dunn - ou como foi mais grosso um promotor: 
So you're telling me that after you shot Jordan Davis in the aorta, he reached over and closed the door?" - Um promotor da Florida, dirigindo se a Michael Dunn

No aftermath do crime, as atenções cairam não sobre o assassino, mas sobre a vítima. Sim: no final de 2012, o foco do noticiário sobre o caso eram as supostas ligações criminosas de um dos amigos de Davis, que tinha uma passagem pela polícia por furtar um rádio e duas caixas de som. E sobre como "Thug Culture" estimulava a violência, como a música que eles ouviam era "musica de bandido", como ele se vestia como um marginal, e como quatro jovens negros em um carro é "ameaçador" - mas nem uma palavra sobre o homem que matou um rapaz de 17 anos, desarmado, e partiu para o hotel como se aquilo fosse a coisa mais normal do mundo. 
Até quando?

E para quem acha que não há um componente racial para o crime, há o que se some a sua certeza de que os quatro eram "certamente criminosos" (afinal, eram negros) e seu ódio intenso a "música de bandido", como define o Rap, em comprovar que Michael Dunn de fato é racista, e a morte de Jordan Davis é movida a racismo: as cartas que Dunn escreveu na prisão. Seguem excertos:

The fear is that we may get a predominately black jury and therefore, unlikely to get a favorable verdict. Sad, but that’s where this country is still at. The good news is that the surrounding counties are predominately white and Republican and supporters of gun rights.”
“The jail is full of blacks and they all act like thugs. This may sound a bit radical but if more people would arm themselves and kill these (expletive) idiots, when they’re threatening you, eventually they may take the hint and change their behavior.”
Em uma das cartas, ele afirma "não discriminar por raça", ao mesmo tempo que ressalta seu ódio pela cultura negra americana contemporânea (para uma medida de como isso "não é racista", considere a seguinte afirmação: "eu não tenho preconceito contra gaúchos, mas eu não tenho uso para certas culturas. Essa "cultura" de bombacha, chimarrão e "musica" que certos segmentos da sociedade migram para é intolerável", seria isso preconceito contra gaúchos, ou não? Agora leve em conta que a cultura "do gueto" é predominantemente negra):
“I’m not really prejudiced against race, but I have no use for certain cultures. This gangster-rap, ghetto talking thug ‘culture’ that certain segments of society flock to is intolerable.”
Na mesma carta, ele afirma que o curso de ação que ele tomou foi para "ensinar uma lição" nos amigos de Jordan Davis, para que eles "mudassem o comportamento". De maneira simples: ele admite que matou um rapaz para intimidar um grupo de jovens para que "agissem como gente".

Como bem colocou Tonyaa Weathersbee, da CNN, o julgamento de Dunn abre um precedente perigoso: a ideia de que, sim, um jovem negro desbocado é mais ameaçador do que um homem branco - do tipo que se chamaria de "cidadão de bem" - com uma arma de fogo, e que este tem o direito de abrir fogo "para se defender". "Alguém naquele juri viu Jordan Davis com uma arma que provavelmente nunca existiu, mas negou-se a ver as balas reais - dez ao todo - que Dunn disparou contra a SUV e contra o corpo de Davis, balas que deixaram Davis sangrando e morrendo no colo de seus amigos", escreveu. 

Renisha McBride: morta ao pedir ajuda. 
E como ressaltou Jarvis deBerry, do Nola.com, quando um homem negro mata outro negro, a comunidade negra como um todo espera que o assassino seja punido. Quando um negro mata um branco isso é usado como argumento de que os negros são uma ameaça - e em casos como este, em que um rapaz negro é morto por um branco? O que se sucede é uma onda de justificativas e a expectativa que se aceite o crime. Independente se a vítima era nova demais, não tinha ficha criminal, ou se era uma garota escapando de um acidente, se pede para que se considere o morto como uma ameaça, o autor não seja punido, e aquela morte tratada como "algo certo".

Enquanto isso no Brasil...
Um precedente que o Brasil conhece bem: afinal, esse é o país onde jovens ouvindo musica típica de comunidades carentes é causa de alarde e "sinal de degeneração moral"; em que esses mesmos jovens se reunirem em shoppings é "preparação para crimes", e em que "bandido bom é bandido morto" (exceto se o bandido for criminoso de colarinho branco, ou for filhinho de papai). Onde amarrar um moleque de rua que cometeu pequenos furtos é "justiça" - quem liga se um dos justiceiros tem passagem por estupro? O rapazote negro é B-a-n-d-i-d-o... 

Um triste veredito, para um crime triste - e que deve ressoar com muitos, e muitos casos por aí... O que mais espanta é que Dunn foi condenado por tudo, exceto matar o rapaz que ele matou. Ainda assim pode pegar até 75 anos de prisão - mas fica o estranho gosto que "você pode matar um rapaz negro, mas tem que terminar o serviço, se não é crime". Será que se os quatro tivessem morrido e não houvesse quem defendesse o morto, Dunn não seria solto da mesma maneira que George Zimmermann foi? Uma perspectiva assustadora - e bem plausível. 

As críticas ao veredito não agradaram a emissora conservadora Fox News, como demonstra o vídeo abaixo - e resta saber se, como George Zimmerman o foi por matar Trayvon Martin, Michael Dunn será alçado a herói da direita americana por matar um rapaz cujo único crime tenha sido - talvez - ser desbocado. Zimmerman  é tratado pelos conservadores americanos como um pobre injustiçado que livrou o mundo de um "marginal" terrível - de assassino de menores, passou a celebridade e mártir. Veremos se com Michael Dunn não acontecerá o mesmo. 


e para quem diz que racismo é coisa do passado... mais um vídeo, breve,sobre racismo e fox news..